terça-feira, 24 de janeiro de 2017

OS IRMÃOS SÃO PARA AS OCASIÕES



Por: ORLANDO MARTINS

Levanto-me para ir tomar café. O ecrã do telemóvel acende e “Deixei tudo por ela” do Zé Cabra irrompe num som galopante e estridente. Carrego no botão de atender, mais para calar aquela cacofonia, e seguro o telemóvel entre o queixo e o ombro.
- Tou…
- Companheiro, como é que vai isso?
- Olha o gajo… tudo bem mano?
- Ouve cá meu paneleiro, queres ir à festa lá cima?
- Quando é que é?
- Domingo,… último domingo de agosto, … já te esqueceste também do que é um engaço?
- Eh cum caraças… como o tempo voa,… deixa-me falar com a patroa para combinarmos o dia da partida.
- Ok, não digas nada aos velhos, vai ser uma surpresa.
- Tá bem, amanhã confirmo se é quinta ou sexta que arrancamos…
- Depois liga, um abraço.
- Tchau.
E, sexta-feira, lá nos metemos à estrada com os miúdos e as patroas a reboque. Durante a viagem o meu filho mais velho dormia e acordava de meia em meia hora.
Quando abria os olhos perguntava:
 - Já chegámos?
- Já faltou mais. – Respondia-lhe com um tom esforçadamente calmo, quase suplicando para que voltasse a dormir, que a viagem era longa e, entre o “quero fazer xixi”, “tenho fome”, “doi-me a barriga”, os quilómetros iam-se tornando cada vez maiores.
- Estão a ver ali as antenas da Nossa Senhora da Serra? Agora é que estamos mesmo a chegar.
- Oh… andas a dizer isso desde manhã. – Protestou o puto.
Passadas as bombas de gasolina do “Feliz”, espreitando para o café “Caracol”, dando uma primeira espreitadela ao Pelourinho e recordando momentos de comunidade e felizes natais na omnipresente igreja, que a ansiedade de chegar aumentava, lá parámos em frente à casa do tio António Piloto.
Silenciosamente galgámos as escaleiras de dois em dois degraus, a juventude ainda o permitia, abrimos a porta, e aquele bando de “forasteiros” invadiu a casa dos progenitores que teimavam em espremer a terra que lhes tinha dado o sustento e a possibilidade de dar uma vida diferente aos filhos.
 Ninguém em casa.
Passados alguns minutos lá apareceram eles vindos da labuta, com a sua dedicação à terra que tanto lhes tinha dado, trabalho e alegrias, e com o coração sempre ansioso e carente da companhia dos seus.
- Dão-nos qualquer coisa para comer? – Perguntou o meu irmão Zé.
- Atão num damos… sentai-vos meus filhos que vou já tratar de qualquer coisa. Deveis estar cheios de fome. – Dizia a minha mãe. 
Os beijos, abraços e suspiros de alegria pelos netos e filhos marejaram os olhos daqueles dois pais que durante quase um ano viveram numa solidão silenciosa… esperando… sempre esperando de coração aberto…
- Ainda há presunto no baixo? – Perguntava o meu irmão. – “Encerte” aí um salpicão ou uma chouricita que farto de batatas fritas ando eu.
- Vou-vos já buscar um pão ao baixo, foi feito anteontem. - Dizia a minha mãe.
Contadas as novas, as vidas e as promessas de regressar mais vezes, e depois da ceia, eu e o meu irmão resolvemos ir matar saudades de todos os lugarejos daquele recanto onde para nós os amigos e as pessoas eram a nossa casa.
Na véspera e ante véspera do domingo festivo que se avizinhava, as tascas eram o ponto de reunião dos habitantes normais e demais migrantes.
E assim, entre abraços e histórias de outrora, e outras vezes de ocasião geralmente acompanhadas de mais um copo para relembrar, a noite foi avançando… avançando… até um céu, de um azul safira, se deixar perfurar por milhares de pontos brilhantes que pareciam lançar sobre nós a cor terciária de um dourado, caindo docemente sobre os nossos sentimentos e convidando toda aquela gente à recolha dos seus lares…
A noite estava amena, e aquele eterno céu estrelado convidou-nos, qual Roque e Amigo, a efectuarmos um périplo solitário e silencioso pelas ruas da aldeia.
Mas um homem é efémero, humano, e como qualquer outro animal, atacou-nos uma necessidade física e inadiável de “arrear o calhau”. E assim, na eira por trás da nossa casa, de cócoras, com as calças e cuecas nos joelhos, lá íamos nós com alguma pressão abdominal, e um ou outro suspiro, aliviando o espírito e o físico.
Com os olhos fixos nas estrelas íamos comentando:
- Isto é lindo, parece que todas estas luzes vivem numa eterna paz de pureza.
- Quanto tempo se passou sem termos visto esta maravilha. – Respondia-lhe eu sem pressas, que o vislumbre daquela vastidão celeste embebedava qualquer um e o momento também proporcionava a reflexão.
- Na cidade, com a merda das luzes dos candeeiros, nem nos apercebemos disto.
- Sabes,… e a maior parte do tempo nem para o céu olhamos. – Respondi-lhe.
E ali estávamos nós estupefactos com o espectáculo, até eu lhe perguntar:
- Por acaso não tens aí um lenço?
Ele, distraído e embebido com a paisagem, e ainda a fazer um último esforço, tira a mão de entre os joelhos, mete-a ao bolso do casaco, bem desviado para trás, e entrega-me um lenço branco, bem dobradinho por acaso, onde se destacava o monograma “J”, deduzi que devia ser a inicial do nome dele – José.
Desembrulhei a relíquia e com ela limpei a gosto, e o melhor que pude, o meu rico “sim senhor”, que o tempo de usar umas pedras ou a folha de alguma erva já lá ía, e quando se apanhava uma urtiga pelo meio até as lágrimas mudavam de sítio.
- Ah seu cabrão dum caralho,… esse lenço foi a minha mulher que mo ofereceu no dia dos meus anos,… amanhã estou fodido, paneleiro da merda,.. eu  bem sei o que tu merecias agora… Cabrão… a limpar o cu com ele, seu maricas.
Eu, numa risota em surdina, na qual ele também teve que alinhar, e já a apertar o cinto das calças, respondi-lhe:
- Olha, para o ano que vem, pedes à tua mulher mais uns lencinhos, caso contrário dás-lhe uma enxaguadela na poça do Espinheiro e mete-lo à “sucapa” para lavar.
O lenço, coitado, lá ficou na eira a arejar, penso que, pelos anos seguintes.
Nessa noite, dado o adiantado da hora, dormimos juntos no último quarto com acesso à cortinha, o pessoal tinha-nos rejeitado no leito já quente, e posso dizer-vos que passámos mais de uma hora às gargalhadas com a aventura do lenço branco, até que a nossa mãe, farta da algazarra, nos advertiu.
- Vede lá se dormis e deixai dormir os outros, seus gandulos.
E lá entrámos num sono tardio, ainda com algumas fungadelas, debaixo dos cobertores.

Sempre considerei este ato altruísta do meu irmão…

14 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Orlando

O Zé já me tinha contado a avaria... ele pensou que estivesses comovido por algum motivo, daí a surpresa ser, ainda maior. Os epítetos foram bem merecidos

Na altura, como agora, ri a bom rir.

E porque rir faz muito bem, obrigada pela "porcaria" da história.

Beijos

Olímpia disse...

Que valente partida, Orlando!
Ri a bom rir e desta vez, o Zé foi bem levado!
Obrigada Orlando por nos teres narrado neste lindo texto, mais uma das tuas aventuras de juventude. Olha que tens muito para contar!
Beijos

Olímpia

Elvira Carvalho disse...

Histórias de antigamente que sempre se lêm com agrado e um sorriso.
Abraço

Anónimo disse...

Os preliminares desta história têm bastante interesse sociológico-afetivo, mas o clímax é uma me…diocridade vinda de quem nos acabara de levar a ver o céu estrelado de Rebordainhos. A existência dos rebordainhenses só é possível porque há milhares de milhões de anos houve estrelas que se desfizeram no pó de que hoje todos somos feitos. As Ruínas do Cercado podem não ser mais imponentes do que as do Coliseu de Roma, o largo do Prado é mais pequeno do que a praça do Rossio, em Lisboa, a Casa do Povo não é tão alta como a Torre do Trump, em Nova iorque, a rua do Covelo não tem a amplidão da avenida dos Campos Elísios, em Paris,… e, no entanto, só Rebordainhos tem a beleza da imensidão de um céu noturno deslumbrante cheio de estrelas brilhantes, à primeira vista muito distantes, mas intimamente tão próximas de nós.

Anónimo disse...

Sr. Anónimo,
Concordo “quase” na integra com o seu comentário ao meu texto, e passo a explicar-lhe as razões:
1. Feliz ou infelizmente, nem tudo o que o nosso organismo absorve utiliza de imediato, porque com o tempo tudo se irá transformar e, parte daquilo que o mesmo decide não aproveitar de imediato é efectivamente aquilo a que todos nós chamamos MERDA. Os Americanos chamam-lhe SHIT. Engraçado como até nisto somos iguais.
2. É com imenso orgulho que hoje posso relembrar passagens da minha vida que relatam acontecimentos passados com um irmão. Ainda hoje, quando nos lembramos, rimos deste e doutras passagens que nos marcaram e veja lá que até são compartilhadas com as restantes três irmãs que tenho.
3. O sucedido no climax do que relato no meu texto aconteceu na realidade, por isso assino com o meu nome, quanto ao lenço, apenas lhe posso dizer que aquele exemplar nunca mais foi utilizado, mas graças a Deus que ele conseguiu outros para substituição.
4. Sei que a vida é uma corrente de transformações mas até hoje ainda não conseguiram ofuscar memórias de uma vida que nunca me atrevo a compará-las com George Washinton, Obama, Trump, Putin, Marx,.. nem sequer com qualquer animal irracional. Apenas sou o que sou e cada um ver-me-á à sua maneira.
Como vê concordo com o seu comentário.

Orlando Martins
(Autor e responsável pelo texto)

Anónimo disse...

Mesmo que toda a gente do blog ache muita engraçada a sua história, eu não lhe acho piada nenhuma! Talvez me falte sentido de humor, mas não deixo de concordar consigo - cada um é como cada qual!
O meu comentário anterior resumia-se a dizer que o céu mais bonito do mundo, que eu já vi na realidade, é o céu de Rebordainhos!

Anónimo disse...

Orlando
Embora hoje,para mim, seja um dia muito triste, pois faleceu uma filha da aldeia que me era muito querida, não deixo de ter o suficiente sentido de humor para me rir com o teu texto. Também ainda me lembro de ir ao "baixo" quando a coisa apertava. Bem hajas por escrever estas memórias.
Bjs
Eduarda

Augusta disse...

Orlando:
Será necessário dizer-te que, também eu, me ri à gargalhada?


Bem, para a próxima tens de contar a vossa ida noturna à Malhada Velha.
Beijos

A. Fernandes disse...

Amigo Orlando:

Vês, meu velho, eu bem dizia que havia ai anda muito material para historiar a essência de Rebordainhos! Ri-me deveras com o poético desenlace da história. O Zé por pouco não esgotou o manancial (que não é nada escasso!) das suas apóstrofes. Realmente, por muito que a narrativa choque os pudicos ouvidos do sr. Anónimo, a vida é inquestionavelmente feita deste conglomerado de realidades antitéticas, o sublime e o grotesco, a poeira das estrelas e a merda que a todos sai pelo ânus (vulgarmente dito de cu). Conhecendo como conheço a ti e ao teu irmão, sei que há mais amizade e carinho nesse chorrilho de palavrotas do que em muitos discursos polidos e recheados de falsidade.
Um abração e manda mais, com ou sem coprolalia!

A. Fernandes

Anónimo disse...

Em defesa da verdade, cumpre-me esclarecer os ilustres bloguistas de que nunca me passou pela cabeça acusar alguém de sofrer de coprolalia, mesmo que de uma forma implícita. Não ponho em causa a vasta cultura que se respira neste blog, mas faço notar que, com certeza por mera distração, ainda ninguém se referiu às Ruínas do Cercado, que eu trouxe a lume no meu primeiro comentário. As únicas ruínas que Rebordainhos tem bem mereciam que os seus habitantes olhassem mais por elas.



Anónimo disse...

Agradeço...

Agradeço a todos os que comentaram este meu texto, Fátima, Olímpia, Elvira Carvalho, Sr. Anónimo, Dadinha, Augusta e Tonho.

É, também, com eles que eu vou aprendendo.

Que os dias que nos restam sejam de felicidade e alegria, irmandade e abertura...

Porra, até pareço um qualquer "Pastor" pregando...

Um bom fim de semana a todos e um sincero Obrigado.

Orlando Martins

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

Agora entro eu, em defesa da minha honra. Faça o favor de consultar o artigo em três partes: "Memórias de uma Zela". Pode ler aqui:

http://rebordainhos.blogspot.pt/search?q=zelas

P.S. Todos quantos fazem o favor de publicar nesta página fazem-no por amor à nossa terra, sendo essa uma forma singela de o demonstrarem. Tenho, para com eles - todos devemos ter - um enorme sentimento de gratidão.

É frequente o meu pedido para que as pessoas me sugiram assuntos, me contem histórias, ou, se preferirem, as escreva quem quiser, e sempre me ponho à disposição dos mais tímidos para, de acordo com eles, assegurar a correcção linguística do texto. Aqui renovo a minha disponibilidade: basta escrever-me para o e-mail do blog, constante da barra lateral.

Cumprimentos

Anónimo disse...

Já consultei as três partes do artigo "Memórias de uma Zela". Acho que é um artigo de grande fôlego que nos ajuda a perceber o período de decadência civilizacional europeia, que presentemente estamos a atravessar, pois salta aos olhos o paralelismo com a época da romanização de Rebordainhos. A cultura dos Zelas acabou... E a nossa cultura portuguesa e europeia?!...
Quanto à minha participação no blog eu preferia uma terceira via. Continuava a mandar os meus trabalhos para os comentários ordinários que seriam reenviados para o lixo eletrónico, quando não prestassem para nada, ou subiriam à categoria de artigo publicado, quando fossem de elevada qualidade.

Cumprimentos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

A sua condição esbarra numa regra de que não prescindo: todos os textos publicados têm autor identificado por mim, mesmo que assinem sob pseudónimo, como já aconteceu.

Obrigada pelo elogio.
Cumprimentos