Por: ORLANDO MARTINS
- Oh pai, pode-me mandar fazer uns socos?
Estávamos
em Outubro, as castanhas eram agora a principal preocupação, e o frio que se
fazia sentir, sobretudo pela manhã, já auspiciava um rigoroso inverno.
Para
finais de Novembro, princípios de Dezembro, deviam cair os primeiros flocos de
neve.
As longínquas e saudosas recordações que tenho
dos invernos eram o Natal, com os bonequinhos do presépio iluminado por uns
cotos de vela estrategicamente espaçados naquele musgo estendido que me
transportava para quimeras de felicidade, e, claro, a neve… tudo branco… a paz
e a pureza pareciam rondar os nossos corações como bandos de pardais
- Oh Maria, o rapaz quer uns socos, se
calhar aproveito e mando fazer também umas botas para mim que estas já não
chegam às sementeiras.
- Tu é que sabes, mas lembra-te que os pés
dele agora estão a crescer, manda-lhos fazer um pouco maiores.
- Olha filho, tu vais ao Tiu Grilo e
dizes-lhe para tos fazer abonados que eu vou ao tiu Carlos Sapateiro para me
fazer uns sapatos para mim.
Todo
radiante lá fui eu, canteira acima, estugando o passo e ensaiando um assobio
que, como sabem, não passavam de tentativas frustradas, e que ia alternando com
um refrão de lá…lá laralá…lá. Enfim, ia feliz.
Contornada
a poça do covelo dirigi-me à loja do tiu Grilo, um homem de tez queimada na
face, onde as rugas denunciavam a sua idade e as amarguras da vida, cabelo
grisalho e estatura mediana.
A
loja do tiu Grilo situava-se ao lado da forja, no início do caminho que
conduzia à Torre Queimada e ao Lameirão, onde se podiam vislumbrar raspas de
madeira, talvez de alguns tamancos já em fase mais avançada de fabrico.
- Oh tiu Grilo posso entrar?
- Que vens fazer? Foi o teu pai que te
mandou cá?
- Foi sim senhor, era pra ver se me fazia
uns socos, mas um pouco abonados porque estou a crescer.
- Atão entra para te tirar as medidas. – Convidou o tiu
Grilo entrando no seu estaminé de janela minúscula e piso térreo.
O
artesão coloca um bocado de papelão de um ocre deslavado, restos de uma caixa
de ajuda humanitária vinda da América, e que na altura servia para transporte
de roupas, leite em pó, queijo e outras surpresas que, de vez em quando,
chegavam à aldeia em camionetas do Estado Português, e eram distribuídas à
população no Prado, em frente à garagem do Padre João, e diz-me sem demoras,
como se o seu ofício estivesse em fase plena de fabrico e não se compadecesse
com qualquer perda de tempo:
- Descalça-te e põe o pé aqui em cima para
eu fazer o risco.
- Não se esqueça de os fazer um pouco
grandes que têm que dar para o ano que vem e que durem muito. – Relembrava eu
ao artífice, sabendo que os próximos socos só viriam para as calendas gregas.
- Fica descansado rapaz que tu vais
crescer e os socos vão ainda andar por cá, nem que mais não seja, nos pés teus
irmãos mais novos.
Fiquei
descansado com a resposta que para mim foi uma garantia de qualidade e seria um
descanso, pelo menos por dois anos, e enquanto os pés lá coubessem, para os
meus pais.
Com
um pau de ponta queimada em carvão, como lápis de grafite, lá riscou o perfil da
planta do pé onde eram perceptíveis os contornos dos dedos e a silhueta côncava
do calcanhar. Pareciam-me bem as dimensões e até me parecia um pé engraçado.
- Posso vir buscá-los amanhã? –Perguntei-lhe.
- Oh rapaz, anda aqui fora. – Diz-me ele
conduzindo-me a um montículo de paus que mais se pareciam com “estrafugueiros”
para o lume.
- Isto são paus de amieiro, - Continuou - tenho que os escavar com a machada,
moldá-los com o formão e isto tudo só para fazer os rastos, fora as solas que
ainda tenho que as pôr de molho. Pori para a semana, mas vai passando por cá
para irmos vendo as medidas.
Conformado,
mas não desiludido, encolhi os ombros em sinal de uma compreensão resignada e
imaginei-me de socos calçados… novinhos,… o Tito, meu vizinho, ia ver…, lá isso
ia…, até tinha pedido que me pusesse brochas no rasto em vez de borracha… iam
fazer barulho ao andar… assim as pessoas notavam que tinha socos novos.
E a
neve? Ah,… aí é que seria engraçado,… a neve a pegar-se às brochas… fazendo
montões agarrados ao calcanhar e na frente que eu havia de sacudir batendo de
lado com os socos na esquina da escaleira antes de entrar em casa.
Só tinha que ter cuidado quando pisasse as
pedras, que as brochas, ao contrário das borrachas em forma de ferradura, eram
muito escorregadias. Mas valia o risco.
E ao
fim de uma semana lá me dirigi ao tiu Grilo para trazer os socos.
- Depois o meu pai faz contas consigo, está
bem Senhor Graciano?
- Eu depois falo com ele, rapaz, e não te
esqueças de os untar bem untados, “esfregaze-os” todos com sebo, principalmente
na biqueira, na gáspea, no cardaço, na lingueta e viras, que é por onde entra
mais água, depois aquece-os ao lume para o sebo derreter e entranhar-se na pele,
e bais ber que os pés ficam sempre sequinhos, mesmo com neve.
Não
muito longe deste estabelecimento, no largo do Pelourinho, a norte da Igreja
matriz, ficava a loja do tiu Carlos Sapateiro, um homem brincalhão, alto, com
cabelo ralo, sempre com ar sorridente, com a comissura e o lóbulo do lado
direito do lábio sempre descaído, não sei se devido a ter sempre entre dentes o
fio de estopa com que cosia os sapatos, ou se era devido a qualquer problema
que tivera no queixo onde apresentava um sinal, que parecia de queimadura,
bastante pronunciado.
Aqui
faziam-se sapatos de cabedal, botas para o trabalho rural como se chamavam. A
loja era no piso térreo com a porta em frente para a fonte do Pelourinho.
Da
entrada da casa, a norte, por volta do meio-dia, a tia Denérida, mulher amável
e que acolhia com doçura todas as crianças, gritava-lhe para ir jantar e informava-o
que já tinha tratado das galinhas enjauladas em rede de arame do galinheiro no caminho
em direcção à canteira.
Era ali
que o tiu Carlos passava o dia com o seu avental e suspensórios de cabedal
cosendo com fios de estopa, e com a auxílio das sovelas, as solas retiradas de
uma pia de madeira com água acastanhada dos banhos prolongados de todo o
cabedal para o tornar maleável à moldagem das formas dos sapatos.
Nós,
um grupo de ganapos em períodos pós-escolar, dos quais destaco o Tito, o Pêras,
o Chêdre o Mário da Celeste e outros que por arrasto nos acompanhavam, fazíamos
correrias à volta do Pelourinho e, ao passar em frente à sua porta, cantávamos:
“Sapateiro…
Remendeiro… Cada ponto dá seu peido…”
E
esta ladainha ia-se repetindo dia após dia, correndo ao passar junto a ele que
muitas vezes nos esperava com um copo de alumínio cheio da água choca
acastanhada da pia de amolecer as peles e nos atirava à cara ficando a rir-se
com o seu lábio ainda mais descaído, limpando as lágrimas de riso que lhe
afloravam aos olhos cansados.
Por
vezes parávamos e observávamo-lo com admiração pela sua dedicação ao ofício
que, diga-se, porque é pura verdade, produzia sapatos de excelente qualidade e
conforto, “assentam como uma luva”, costumava dizer o meu pai.
Com
esta profissão criou, que eu conheça, três magníficos filhos, o Duarte, a
Maria, que emigrou para Espanha, e o Fernando que era da nossa idade e também
alinhava connosco.
Certo
dia de calmaria nas brincadeiras, estando o grupo sentado no tanque do
Pelourinho, o tiu Carlos acerca-se da porta do estabelecimento e diz-nos:
- Oh garotos, binde cá que tenho aqui uns
caramelos que a minha Maria me trouxe de Espanha, são doces, mas eu já não
tenho dentes para os comer.
O
Tito olha para mim e diz-me com ar desconfiado:
- Será que não está a brincar?... Mas não
deve estar, que na semana passada a Maria esteve cá. Bamos lá garotos?
- Bamos…- Respondemos todos.
E, pacificamente,
ele foi-nos distribuindo pequenos pedaços castanhos irregulares que mais
pareciam pequenas pedras, mas, talvez os caramelos em Espanha fossem assim,
pensámos.
Apercebendo-se
da desconfiança que apresentávamos, o tiu Carlos garantiu-nos que eram
caramelos dos bons, vendidos avulso em Espanha. E lá arrancámos nós com a
guloseima para os degraus do Pelourinho para a degustar.
O
Mário da Celeste foi o primeiro a mandar uma trincada no caramelo dele e a cara
com que olhou para nós deixou-nos apreensivos.
Um a
um provámos a nossa parte e constatámos que aqueles caramelos não eram mais que
pedaços de pez (resina) para passar nos fios de estopa para coser os sapatos! Indignados
e enganados, e como que lançando um grito de guerra, entoámos sem parar:
“Sapateiro
remendeiro cada ponto dá sei peido….”
“Sapateiro
aldrabão é trafulha e aldrabão…”
“Sapateiro
remendeiro cada ponto dá seu peido…”
“Sapateiro
aldrabão é trafulha e aldrabão…”
E
desatámos a correr em direcção ao prado para nova brincadeira, que nesta
tínhamos caído nós, que o diga o tiu Carlos que nos observava da porta a rir-se
com gargalhadas despregadas de tal forma que até o avental parecia abanar, e
gritava-nos:
- Quando quiseis mais caramelos vinde cá
que ainda há mais.
Moral
da história: “Os caramelos espanhóis não
prestam”