sexta-feira, 23 de maio de 2008

Memórias - João Pereira "o Fouce"



Olhava-se sem piedade. As pernas atraiçoavam-no.

Desequilibrava-se, mas não se deixava vencer.Tinha que se aguentar.

Uma lágrima escorregava devagarinho, rosada, quase transparente. Ninguém via. Só tu notavas, pai.

Não queria admitir, mas parecia-me mais velho.Muito mais velho.

O seu rosto, triste e enrugado como o chão da serra. Cheio de rugas fininhas, onde se destacava a cor pálida e o olhar cansado dos seus olhos.

O cabelo branco, todo branco como neve.

Estava triste, o pai.

Na rua, e apesar de ser Verão, morava o vento da Sanábria. Aquele que nos obrigava a manter a porta fechada. Ninguém falava. Só o vento.

Tentava afugentar os pressentimentos que se recusavam a sair do meu pensamento.

Agarrava-lhe a mão. Acariciava-o.

Queria que aquela tristeza muda largasse o seu coração. E, comovida, deixava-me perder nas agradáveis memórias de, quando à noite, o ouvia contar, colado ao granito das paredes, as aventuras de quando galgara montes, descrevera trilhos, veredas e carreiros por onde passara, quando, na calada da noite, os lobos lhe saíam ao caminho.

E, ao lume, na paz da lenha a arder e da candeia a bruxulear, ouvia-o falar das aventuras e da amizade só possível entre gente humilde e sacrificada. Dos companheiros do arado e do suor que, alegremente, todos abandonavam numa pinga de vinho ou na sombra do descanso.

Não queria descer da nuvem de abstracção que me envolvia.

Tudo ficara parado como se, de repente, tudo se passasse em câmara lenta.

E, embrenhada entre giestas e urzeiras, via-me a transportar no braço uma cesta.

Ouvia a sua voz e o mugir meigo das vacas a lavrarem os castanheiros. Comovida, parava diante duma flor. Cheirava-a e chamava-o. Chamava por si, pai.

Depois, estendia a toalha no chão, debaixo dum castanheiro ou de alguma carvalheira e, cuidadosamente, colocava pratos, talheres e as panelas com a sopa e as batatas com bacalhau. E, com uma imensa felicidade, observava-o a comer e a limpar o suor da testa, com um lenço que tirava do bolso das calças.

Lá ao longe, as serranias.

Despegava-se tanta calma e tanta vida, que os meus olhos abandonavam o corpo e perdiam-se na imensidão.

Desci desta nuvem.

Lá fora, o vento parara.

O sol já brilhava na janela.

Ouvia-se o chiar de um carro de bois a passr na rua.

O pai, milagrosamente, levantou-se da cadeira e, desfazendo-se em forças, lá se foi arrastando até à varanda. Debruçado na grade, espreitava.

Imóvel e silencioso, contemplava.

E, enternecidamente, sorriu ao ver os animais que puxavam aquele carro, talvez pensando que da sua junta de vacas se tratasse.Com um enorme brilho nos olhos, perguntou:

-"Então, para onde vais hoje"?


21 comentários:

J. Stocker disse...

Olímpia

Sem palavras e com algumas lágrimas a tamborilarem!

Augusta disse...

Belo. Lindo mas que fez aumentar esta imensa saudade. Queria apagar da memória a fase em que o malvado Parkinson começou a levar-nos o nosso PAI. Mas, infelizmente estas memórias teimam em persistir. Resta-nos a certeza de que fizemos muito, embora esse muito tenha sido muito pouco.
Apesar das saudades que fizeste avivar, digo-te: Obrigada mana

Anónimo disse...

Tu já conseguiste. Eu ainda não: parece que os meus dedos têm nós na garganta!

Está muito bonito e poético o teu texto. Ainda bem que a tua estreia, aqui, foi com ele.

Anónimo disse...

Liloto.

Abençoada sejas por partilhares connosco esta descrição tão cheia de realidade e emoções.
Em breves palavras descreves a vida e todo o amor que ela encerra e nos envolve, com os nossos, para a eternidade...
Perante o teu texto pouco mais consigo dizer, além de também o sentir e relembrá-lo.

Parabéns!!!

"Então, para onde vamos hoje"

Orlando Martins

Isamar disse...

Olímpia

Tanto de bonito como de comovente. Uma descrição feita com o realismo de quem conhece muito bem a pessoa a quem se refere. Agarram-me as palavras perpassadas de amizade, amor, saudade, tristeza.... e transporto-me para a ruralidade onde dei os primeiros passos. O avô sentado ao borralho, o caldeiro com a água que ,depois de quente, derramaria sobre as sopas de pão temperadas com azeite... o vento norte, gélido, a entrar pelas janelas , sem vidro, os pardalitos a chilrear no estendal...
E tanto tempo passou!

Obrigada, Olímpia!

Bem haja!

Um abraço

Anónimo disse...

Amiga Olímpia
Parabens por esta bela prosa, que, penso seja sobre a parte restante da vida de seu pai, nós nunca estaremos preparados para aceitar a morte, mas podemos prepararmo-nos para mantermos vivos os nossos mortos, como o fez a Olímpia nesta prosa, tão cheia de carinho.
Gostei
Abraço
Manangão

J. Stocker disse...

Caras cunhadas

Augusta e Olímpia

O vosso Pai e a Senhora vossa mãe, nunca foram "os meus sogros", mas sim o Pai que perdi ainda criança e a mae que partiu quando eu estava no seriço militar em Angola, sem dela me poder despedir!
No meio de toda a infelicidade, tive um bafejo de sorte, uns tios avós, sem filhos, criaram-me, com o mesmo carinho, ele partiu pouco tempo antes de casar com a vossa irmã, ela partiu pouco tempo depois.Novamente sem Pais, aos 34 anos, altura da vida em que as suas referências, exemplos e sobretudo o seu carinho, fazem muita falta, tive novamente a sorte do meu lado. Ganhei novos Pais, ao fim de poucas visitas à aldeia, os vossos Pais eram os meus!
As longas horas de conversa na cozinha com a tua mãe o ver o amassar e cozer dos grandes pães de centeio, acompanha-la a dar a vianda aos porcos, a sua alegria e jovialidade, enchiam a alma.
Com o vosso Pai, eram os passeios que faziamos ao final da tarde, ao cabeço cercaso, as idas de carro, ver o pôr do Sol a Vila Seco, e, então quando lhe falava em ir à terra onde nasceu "Cabanas" os olhos dele brilhavam, falava muito mais do que era costume, mostrava e eplicava as Terras que trabalhou, os baldios que desbeavou, e, eu escutava embevecido o que ele me ia contando, com admiração e respeito.
Depois do jantar, no Verão, eram as conversas e as histórias, com os que estavam e passavam pela vossa escada, acariciados pela brisa fresca do anoitecer, de Inverno, o cenário, era mais pequeno, não tinha estrelas, tinha o brilho e conforto do Lume crepitante.
Infelizmente partiram, mas deixaram um exemplo de vida a seguir!
Não quero perder novamente outros Paisescolhi como Pais adoptivos "o Mar e a Aldeia de Rebordaínhos" como referências vivas que me acompanharão até encontrar todos os outros que perdi!

Obrigado Olímpia por me teres ajudado a deitar cá para fora, o que calava.

Augusta disse...

João:
Agora fui eu que fiquei sem palavras e com os olhos molhados.
Grata

Olímpia disse...

Obrigada joão, por esta tua homenagem ao PAI e à MÃE.
Sempre soube do teu carinho por eles e, garanto-te:eles também gostavam muito de ti.
Fiquei contente que, através do meu grito, tu tivesses gritado também.
Já agora:que tal colocares o filme de que falaste?Assim, o nosso trabalho em equipa ficava mais completo...
Beijos
Olímpia

Olímpia disse...

Augusta:
Obrigada pela fotografia.
Desculpa ter-te avivado estas memórias muito mais vividas por ti ,do que por nós.Por tudo o que tu fizeste por ELES e eu não pude fazer, MUITO OBRIGADA.
É claro que mantenho vivas ,alegres recordações cde infância mas...falar sobre o PAI...
Aquele Parkinson, a sua teimosia em não ir embora, a impotência de quem nada poder fazer !
É difícil esquecer!
Beijos
Olímpia

Olímpia disse...

Obrigada por teres colocado a fotografia.
Pois é, foi com esse nó na garganta que eu, escrevi este texto.E consegui.
Já viste quanto é difícil, escrevermos sobre aqueles que amamos?
Bjos
Olímpia

Olímpia disse...

Orlando:
O que dizer perante essas palavras?
Estás a ver, a nossa cumplicidade?
Como tu entendes!
Obrigada, pelo carinho que sempre sentiste pelos meus pais.
Até breve
Olímpia

Olímpia disse...

Que palavras tão bonitas, Sofia!
Fiquei contente por lhe ter lembrado a sua meninice.
Sabe, em Rebordaínhos, também se faziam sopas.Também ferviam a água num pote (panela de ferro com três pernas),ao lume, para depois a derramarem numa tigela contendo finas fatias de centeio.Depois, também as temperavam com azeite.
Que deliciosas que elas eram!
Obrigada, pelas suas doces palavras.
Abraço
Olímpia

Olímpia disse...

Amigo Manangão:
Este texto, é de facto um pequeno relato ,da batalha travada entre o meu pai e a doença de Parkinson.
Ele, sempre nos deu grandes exemplos.Esta luta, foi mais um:a grande vontade de viver.
Infelizmente, já não o temos entre nós e, lembrá-lo, é homenageá-lo.
Obrigada, pelas suas palavras.
Abraço
Olímpia

Anónimo disse...

João

Sei bem quão verdade é aquilo que dizes.

Porca da Vila disse...

'Para onde vais hoje'... Também ao meu avô eu ouvia perguntar aos mais novos que lhe passavam à porta a caminho do amanho das terras, numa fase em que a ele faltavam também já as forças. Perguntava, não por querer saber, mas com vontade de ir também...

Parabéns. Pelo texto, e pela partilha.

Um Xi Grande

Anónimo disse...

Muito bem Maria Olimpia! Nunca pensei que fosses tão criativa!
Quem lê isto não se livra que lhe caia uma lágrima...
Beijo

J. Stocker disse...

olha, olha

A "Lavandeirinha" veio visitar o ninho da Tia!
Os outros não tiveram esse previlégio, só a desculpo porque sei que anda cheia de trabalho, e ainda por cima sem ser remunerado.
Será que ela sabe o que é uma lavandeira?

Olimpia estou cheio de ciúmes

Augusta disse...

Se tu ficaste com ciúmes, imagina eu que até sou madrinha! Mas não faz mal, eu sei que ela gosta de mim, e dos primos nem se fala...
Sabe lá ela o que é uma lavandeira!... A esta altura do campeonato, já deve ter perguntado à mãe, para não fazer má figura!
Beijos Catarina, e aparece mais vezes. (digo o mesmo aos restantes sobrinhos, e irmãos)

Anónimo disse...

Obrigada,Porca pelas suas palavras.Era isso mesmo.Sei que a essa pergunta, correspondia um desejo imenso do meu pai, em poder ir também.
Um abraço
Olímpia

Anónimo disse...

Quéqué:
Eles ficaram cheios de ciúme mas eu... fiquei bem contente.
Agradeço as tuas palavras.
Já sabes como é a tua tia:quando se lhe solta a língua (neste caso a escrita), aqui vai disto.
Escrevi sobre momentos vividos e muito sofridos.Tu sabes disso.
Bjinhos
Pipicas