por
FILINTO MARTINS
A vida não se aprende nos livros… aprende-se no Blogue de Rebordainhos…Não dizem a idade, mas para serem as primeiras a utilizar a ambulância tudo se descobre… Se naquele tempo houvesse televisão… Sempre terá sido a Fátima a servir-se de uma “ambulância” para poder nascer na cidade e não em casa. A Maria Augusta não foi de ambulância, veio de ambulância, a “burra grande” da tia Ana Costa. Era um luxo.
Pelos vistos só esquecemos aquilo que queremos e como tal, nem adiantava dizerem-nos que tinha vindo no bico da cegonha, porque não havia cegonhas na nossa terra.
"Amar e trabalhar são as duas chaves para tudo o que dá vida e significado" – Freud.
Alta, magra, sulcos vincados no rosto tisnado pela lareira, vestida de negro dos pés à cabeça…
Envelhecer é uma arte. Ao contrário dos animais, a espécie humana vive muito para além da reprodução e continua a desenvolver-se durante a sua existência. Será apenas um factor de risco e não uma doença.
Foram estas algumas das razões que me levaram a comungar ideias nunca pensadas há décadas atrás, porém a minha manhã dos 59 anos será igual à dos 60, que se aproxima.
É esta a imagem que tenho da tia Felecíssima, a quem eu, quando pequenote fazia alguns recados e em troca recebia uns amendoins ou rebuçados e não só…
Quando nasceu a sua Augusta, eu ia a sua casa com alguma frequência e aí era um moço de alguns recados:
-“Traze-me uns guiços”… quero que o lume arda melhor.
A Augusta chorava e logo ela pegava num pano em que deitava açúcar e com uma linha fazia uma chupeta. Remédio sagrado… chupava para regalo da avó que logo exclamava: “isso, minha Augusta”. Espero bem que ela não tenha diabetes, se os tiver fica a saber que foi por amor.
Ainda pequenote, sem escola para frequentar e pouco amigo de andar com as vacas nos lameiros… lá ia outra vez … lá vinha outro recado:
- “Olha, toma lá este dinheiro e vai à taberna comprar-me pregos.”
A distância era pequena e lá ia eu todo contente:
- "Senhor Ernesto, queria este dinheiro de pregos, para a tia Felecíssima."
Nunca tinha visto pregos assim. Trouxe a encomenda que entreguei com um olhar de surpresa. Afinal eram cigarros. Com muito cuidado e prática, a tia Felecíssima passou, suavemente, a língua no papel que embrulhava o dito prego, pegou num tição do lume e acendeu-o. Dadas umas passas continuou as suas tarefas domésticas, sem tirar olho da sua menina.
Nunca tinha visto uma mulher fumar! Isso era coisa de homens e já maduros. Terá sido ela a primeira Matriarca de Rebordainhos, do século passado? Nunca ouvi uma crítica ao seu hábito… Ah! Grande mulher! De trás da serra…
Ora, sempre que eu andava por lá, o recado era o mesmo: “vai-me buscar pregos”.
Na altura eu até nem me importaria, porque não havia televisão, playstation, internet, blogues… mas havia o Mendonça, figura que metia medo a mulheres e crianças. Só ele sabia arranjar foles e albardas para burros, porém quando estava com areia na asa… aquele narigão avermelhado, alto, andar lento, olhar fulminante e os seus apetrechos de trabalho eram suficientes para ter logo medo, porque os mais velhos nos diziam “vem aí o Mendonça que te capa”.
Com medo de encontrar o Mendonça e ficar sem o meu instrumento que muito prezo, certo dia lembrei-me de pregar uma partida à tia Felecíssima…
Como era seu hábito não acabar o cigarro pelos afazeres e cuidar da neta, deixava a prisca no banco ou no fogão, que depois acabava… até nisso ela era poupada. Puxando pela minha imaginação, retirei algum tabaco e meti-lhe cinza. Ah! Vício desgraçado e distracção a minha… acendeu a prisca e logo a cinza lhe foi para a boca, que não a impediu dum grito: “filho da puta, foste tu!” (A Augusta não ouviu).
Suponho que desci os degraus dois a dois e nem o Mendonça me agarrava…
O tempo cura tudo. E como diz o provérbio:”Todo o mundo quer conhecer o paraíso, mas ninguém quer morrer”, também eu continuei a ir para junto da tia Felecíssima, pois nem eu sabia que era a sogra do meu irmão, nem ela dizia que ele era seu genro… lembro-me bem que, com muito carinho, ouvia-a: “vou aquecer estas meias para o senhor António, que está a chegar”.
Nem todos podem ser ilustres, mas todos podem ser bons.
7 comentários:
Caro Filinto
As bibliotecas que são os velhos precisam de quem lhes saiba ler os livros, que é como quem diz, que os guarde carinhosamente na memória e os mantenha vivos. Assim fez o Filinto com esta personagem enorme da minha infância. A tia Fecisma, não o sendo, foi a única avó que tive. É com enorme saudade que recordo os serões passados com ela e com os netos e, ainda hoje, parece que a vejo sentada no último degrau da casa de meus pais, a cantar a sua cantiga preferida. Essa cantiga, agora cantada pela filha, vou publicá-la daqui a alguns dias.
Obrigada por este bocadinho tão terno e vívido.
Filinto:
Como disse a minha mana, a tia "Fecisma" faz parte do nosso imaginário. Eu, dois meses mais nova que a sua Maria Augusta, também eu Maria Augusta que, para nos distinguirem, eu era apenas Augusta, enquanto que à sua neta chamavam mais de Maria Augusta, cresci junto dela, vivi a maioria da minha infância na sua casa, e até caí do alçapão... Fizemos traquinices, brincámos... Muitas vezes prendeu a sua neta com uma linha à perna da mesa para evitar que fosse para o prado brincar com os demais, e também eu fui muitas vezes à taberna comprar "pregos" para a tia "Fecisma".
É bom recordar as pessoas que nos dizem muito e, por isso, grata por avivares as nossas memórias
Augusta
Filinto
A primeira Matriarca! Bela definição para uma pessoa daquela época.
Creio que quase todos os garotos da aldeia tiveram a mesma experiência que tu.
O meu irmão Evangelista contou-me, muito divertido a mesma passagem dizendo: "Sabes como se chamam os cigarros da tia Fecisma?
São pregos!"
Mas olha, continua a dar-nos estes momentos deliciosos, trazendo sempre à nossa memória as lembranças que por vezes já estão esquecidas.
Olá, primo:
Como uma terra tão pequena está cheia de grandes personalidades!
Também eu me lembro de ter vendido alguns "pregos" para a tia Fecisma quando o meu pai tomou de trespasse a taberna do sr. Ernesto (este era senhor, não era tio porque era o senhor mais dinheiroso de Rebordainhos... e também ele merecia uma historieta neste blog). Foi o seu exemplo de matriarca fumadora que me levou à primeira chupadela nos Kentucky que custavam oito tostões o maço. Para os mais novos do reino do euro e da abundância: com 1 cêntimo comprar-se-iam, ao preço de então, dois maços e meio. Detestei a experiência e perguntava-me o que é que a tia Fecisma (ainda hoje não sei se seria mesmo Felicíssima, mas Fecisma fica-lhe melhor) poria nos pregos dela para lhe saberem tão bem...
Filinto:
A tia Fecisma, não só me é uma figura familiar, como também me era muito querida.
Para além de vizinha, era tia do meu pai e, sempre ajudou a ilustrar os nossos serões e o nosso quotidiano.
E, para não fugir à regra, também eu sou conhecedora de histórias acerca dos seus "pregos".Não só lhos comprava como também a ouvia muitas vezes perguntar ao meu pai: " Ó João, tens um prego?"
De facto, os nossos idosos são uma fonte inesgotável de saber.E, por cada cabelo branco ( a tia Fecisma não tinha muitos),por cada ruga, eles têm sempre uma história fantástica para contar.
Obrigada por nos presenteares com este belo texto.
Olímpia
Caro
Filinto Martins
Com a ajuda de todos vós, lá vou enriquecendo o meu conhecimento sobre a vossa aldeia, quem diria que apesar de tão pequena teria tanto para nos contar.
Um abraço
Caro
Filinto Martins
No primeiro texto que publicou, deixámos passar o facto de não ter vindo a terreiro agradecer os justos e merecidos comentários que a sua prosa suscitou, agora que já sabemos que foi informado da etiqueta, que deverá ser cumprida, cá o esperamos, sugerindo a forma expedita usada pelo seu primo António , agradeçe a todos de uma vez!
Um abraço e perdoem a brincadeira
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