sábado, 24 de janeiro de 2009

ARES DA SERRA

VIII - O ZEQUINHA LELÉ E GARRETT

por

ANTÓNIOAUGUSTO FERNANDES



Mal acabara de largar o calçonico rachado para entrar no bê-a-ba, e logo aí pela segunda classe, na velha escola da Portela, calhou-me de acamaradar com o pândego do Zé Manel da tia Laurinda, vulgo o Zequinha Lélé, pequeno pastor de profissão e estudante de primeiras letras nas horas vagas. Ele já por lá andava quando eu cheguei e por lá ficou ainda a lutar denodadamente pelo diploma da quarta classe quando levantei arraiais para outros climas.

Cabeça granítica para letras e algarismos, é verdade, mas um artista, o Zequinha! Sim, senhores, um verdadeiro artista! Visceralmente avesso às operações aritméticas, às serras de Portugal e aos ramais dos caminhos-de-ferro e mais ainda ao frete estuporado dos ditados, era vítima permanente de serviço à férula do senhor Francisco Ribom. Mas portava-se como um valentaço de dez anos, fosse frente à palmatória, sem verter lágrima depois de meia dúzia de bolos, fosse a levar o caldo ao pai, perdido por lá com as ovelhas. Quando as sombras começavam de se caldear com o negrume do casario, era homem para agarrar na marmita e num chuço de carvalho e de se embrenhar pelos Montes onde o pai, o tio Domingos, e os cães do gado guardavam as canhonas, sem medo a lobos ou almas penadas, uns e outras bastos por aqueles sítios, ao que se dizia. E por lá passava a noite nas cancelas, embrulhado numa manta dentro do carreto, se o frio já apertava, ou num pequeno respaldo de colmo virado a norte e sustentado por estacas num ângulo de quarenta e cinco graus, se estiava. Por estas valentias ele era o herói que eu invejava às escondidas.

Mas não só por isso. O que ele era mesmo, era um artista, a primeira de muitas personificações de Orfeu com que me foi dado topar nas andanças da vida.

Nas tardes de Verão, quando o sol marrava já na serra dos Pereiros, a calma declinava e os gados recolhiam ao remanso dos currais, da sua esconsa varanda de granito talhado a picão (que já não existe) fazia palco. De cócoras como os escribas egípcios, ripava do pífaro que ele próprio talhara em vara de calineiro e ali se entretinha a esparzir sobre a pacatez da aldeia, mofina nos seus casebres amodorrados na tristura do granito negro e do musgo das invernias, trilos melancólicos que falavam da terra e das ceifas, dos gados e das touças de carvalhos negrejando a sul, pelas encostas do Cabeço Cercado. E eu, analfabeto musical, pasmava para o pequeno protegido de Apolo que, pela sua flauta, dizia de si, de todas as coisas que argamassavam o nosso pequeno mundo e de outras que, não sendo deste mundo, povoavam as histórias fantásticas do ti Zé Miguel nos serões de Inverno.

Do pequeno novelo cinzento pousado no chão emanava música serena e animalmente, como cantam os tentilhões. De repente suspendia a musicata, largava pulo de gamo, espinoteava como jerico picado de atavão, lançava uma casquinada de fauno e arrebatava-nos para a pândega – travessuras em que a sua criatividade se transcendia e que, as mais das vezes, nos granjeavam umas boas nalgadas. Ou então escamugia-se, nem o diacho sabia para onde. E às horas do caldo, do alto da varanda, a tia Laurinda atroava os ares em brados sonoros como os que no Vale de Josafat hão-de acordar os mortos: Ó Zé Mmaneeeeeeeel!… E ele lá aparecia, com os seus vagares, quando muito bem calhava.

Mas a sua arte maior era a harmónica, a plebeia gaita-de-beiços, ou seja, o realejo, que ele trazia sempre dependurado de um atilho preso à presilha do cinto, não fosse o diabo sumi-lo pelos alçapões dos bolsos das calças surradas. Um amolgado realejo que o pai lhe comprara por cinco mil réis na feira dos Chãos, para o caçar ao pé de si pelos montes atrás das ovelhas.

Pequeno Mozart sem o saber, melodia que lhe embatesse nos tímpanos jorrava-lhe espontaneamente pelo realejo, mais corredia que o cantochão da tabuada ou a lenga-lenga das serras de Portugal.

E foi assim que, um dia, ele veio surpreender a malta da carica e da bilharda com uns versos muito mazorros e patriotiqueiros, ouvidos na Feira dos Chãos, esse espaço mítico do cosmopolitismo serrano, onde tudo se vendia e mercava, onde, a molhar o alboroque, se apanhavam pifos monumentais, onde se rachavam cabeças com a mesma naturalidade com que se talhavam melancias, onde cegos, vagabundos e marchantes faziam presentes todas as notícias trazidas do vasto mundo que ficava para lá das serras... Campestre, risonho, levemente escarnica e sério, como os jograis dos frisos góticos, ali, naquela tarde, depois da guerra com o ditado e a aritmética, nos despejou os versos que ouvira na Feira dos Chãos. Tocava-os no realejo e cantava-os de seguida para nós, seu público fedelho, encostados ao fueiro da bilharda ou de cócoras, deixado suspenso o piparote na carica, banhados em deleite e embasbacamento. Começava assim:

Vasco da Gama pró mar,
Coutinho para aviador,
Amália para cantar,
Garrett para escritor.


Passava nessa altura, suponho, o centenário da morte de Garrett e aquilo tornou-se numa espécie de hino que muitas vezes berrávamos heroicamente aos pinotes pelos quatro cantos do pátio da escola. Por isso se me quedou nos escaninhos da memória, como brinquedo escangalhado, essa quadra que assim rezava das glórias pátrias. Soava-me bem, caíra-me no goto: Garrett para escritor. Viessem de algum aedo ambulante, dos que pelos caminhos os vendiam em folhetos a cinco tostões, ou de algum poetastro da situação que tivesse revolvido imortalizar o evento, fosse quem fosse o ignoto bardo, o resultado é que os toscos versos tiveram o condão de introduzir Garrett no panteão privativo dos meus paradigmas pátrios, lado a lado com o Pedro Álvares Cabral e o Matateu, o Nuno Álvares Pereira e o tio Rasca dos Pereiros, o Camões e o Nuno, que já andava na quarta classe e que fez um verso que era assim: ó Cafarnaum, Cafarnaum, marco do meio mundo! Era um grande poeta o Nuno! Eu não percebia muito bem aquilo do Cafarnaum, nem por que diabo havia de ser o marco do meio do mundo, porque eu era dos pequenos da primeira classe, mas que o Nuno era um grande poeta não fazia dúvida. E sentia-me muito honrado, porque o Nuno era meu primo.

Pouco depois, ainda na primária, apareceu um outro motivo, mais forte ainda, para eu adoptar Garrett como meu poeta de eleição: durante as férias, que se estendiam do domingo anterior à Páscoa até ao domingo da Pascoela, nos dias de meia primavera, as menininhas da sala da D. Maria tinham por hábito convergir para o largo da Casa da Aula. Depois de cochicharem os últimos enredos e apreciarem com ar entendido as respectivas toilettes, armavam umas danças de roda só delas, interditas ao rapazio. Enlaçavam as mãos e desenhavam uma larga roda que ia ondulando ao sabor da melodia que entoavam nas suas vozitas de soprano ainda a cheirar a leite, fazendo esvoaçar como arvelas coloridas os laçarotes do cabelo. E essa melopeia, assim esparzida no langor do entardecer, que se me coalhou na memória ligeiramente nublada da infância, foi a definitiva sagração do meu Garrett. Cantavam assim as petizas:

Eu tinha umas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Que em me cansando da terra
Batia-as, voava ao céu.

E não é que as mocinhas, levantando e baixando os bracitos, ondeando na luz branda do entardecer, tinham mesmo asas!


Eram brancas, brancas, brancas
Como as do anjo que mas deu...
.........................................
Cegou-me essa luz funesta
De enfeitiçados amores...

Eu não atinava lá muito bem com essa coisa da luz funesta, mas enfeitiçava-me de mistério e, quando a cantoria descaía para tom menor, bem adivinhava que algo de terrível iria, por certo, acontecer.

O ritmo abrandava, a melodia fundia-se na quietude da tarde e vinha o remate, muito lento, muito triste:
E as minhas asas brancas
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram,
Nunca mais voei ao céu.

As sílfides baixavam as asas, findava o bailado e, pelos ares, como penas brancas caindo de asas brancas, volteavam, sacudidas pela flébil brisa vespertina, as pétalas brancas das cerejeiras bravas que cresciam no pátio da escola.

Foi assim que a poesia me bateu à porta e Garrett se me tornou alguém familiar.
Pouco depois, para que a magia se adensasse, aconteceu-me ainda aquele Pescador da Barca Bela que aparecia num certo manual que tinha na capa uma parelha de criancinhas muito louras e aplicadas sobre um livro aberto:

Pescador da barca bela
Onde vás pescar com ela
Que é tão bela,
ó pescador?

Como eu fantasiava as ondas do mar que meus olhos serranos nunca haviam contemplado e transfigurava a barcaça que ilustrava o poema e me apavorava das desgraças vindouras do pescador!... Ainda que nada soubesse de sereias nem das artimanhas com que é usança sua (ainda hoje) enfeitiçarem os pescadores, vagamente intuía que pescadores somos todos nós e que a vida não é para brincadeiras.

Nos dias que correm, menos disponível para esse sortilégio da poesia e empedernido na profissão de esquartejar textos em busca de predicados e complementos circunstanciais, volto a subscrever totalmente o Garrett da minha infância, saudando o Zequinha, pequeno e bárbaro bardo que mo revelou com o seu realejo. E ainda hoje, quando adrega de me soar a música dos versos de Camilo Pessanha

Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva grácil, na escuridão tranquila, /…/

é ainda a flauta do Zequinha Lelé que eu ouço, vinda da infância, das sombras do crepúsculo e do cimo das escadas da tia Laurinda, borbulhando velhas melopeias que faziam da pobreza desses tempos pedaços de paraíso que eram nossos sem que disso tivéssemos consciência.

3 comentários:

Anónimo disse...

Tonho

Bem-hajas por mais uma história de ternura.

As escadas da tia Laurinda já não existem, mas nos olhos da memória ainda a vejo, a ela, de pé naquele patamar, sempre que eu passava para a escola.

Do Garrett, olha, apeteceu-me acrescentar o final:

E as minhas asas brancas,
Asas que um anjo me deu
Pena a pena me caíram...
Nunca mais voei ao céu.

Nunca cantei a cantiga - nem sabia que existia. Ainda ma hás-de ensinar!

O João vai ficar muito feliz amanhã, quando lhe disser que nos enviaste mais esta brisa da Nogueira.

Beijos

Anónimo disse...

António

De um primo para outro primo

Tenho a certeza que o Zé Manel vai ficar com os olhos arrasados de lágrimas, com a emoção de teres escrito um conto sobre a vossa infância!
Sempre que me vê, pergunta-me por ti e a frase é sempre a mesma:
"Tenho tanta vontade de ver o Tonho. Ele quando vem cá? Éramos tão amigos e nunca mais o vi. Carai, dava qualquer coisa para o poder abraçar!"
Gostei imenso do teu conto. Também me relembraste a tia Laurinda sentada naquela varanda e o Zequinha entoando as músicas dele com o realejo ou com a flauta aos serões, que faziam da portela um cantinho diferente. E quando a tia Laurinda o mandava calar, porque já lhe doía a cabeça de tanto ouvir tocar? Bons amigos e bons vizinhos. Quantas vezes subi aquelas escadas para conversar com a Adília! Ainda hoje, apesar da casa já não ser a mesma, consigo relembrar cada cantinho da antiga e sentir-me tão bem como dantes.
Obriga primo por mais estas belas e maravilhosas letras.
Bjs
Céu

Augusta disse...

Tonho:
Sei que compreendes a nossa ausência...
Olha, saboreei este post até à última letra. Aliás, faço isso com todos eles. É enternecedora a forma brilhante como consegues reviver momentos passados, que na altura não tinham para nós qualquer significado. Só pessoas com a tua sensibilidade conseguem que hoje, passados tantos anos, eles sejam tão plenos de sentido.
Grata por estes momentos e olha, enquanto absorvia o teu texto, saboreava também uma malga (grande) cheia de uma deliciosa sopa à maneira da matança!
Promete que nos ofereces mais