terça-feira, 16 de março de 2010

A PENA DE BOCAGE



por

ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Era de facto intrigante! Que despautério o Bocage, em frente de uma folha de papel, a coçar a barbela com uma pluma de galinha enquanto olhava para o Sete-estrelo, como quem tenta lembrar a tabuada dos nove ou rabiscar uma frase bonita para dizer à namorada. Porque diabo não se agarrava ele a um lápis ou uma caneta com aparo de aço como era de usança em tais ocasiões? Até que o Sr. professor Ribom nos deslindou a alhada: era assim que antigamente se escrevia, com uma pena. Não de galinha, mas de pato, bem escolhida, bem afiada.
E Camões e outros quantos da sua igualha também se serviam de semelhante artefacto para passar ao papel as suas inspirações.

Aquilo caiu-me no goto e deixou-me com ideias. Estava-se mesmo a ver que, para se ser escritor de valia, era indispensável ter à disposição uma pena de pato bem afiada!

Nessa tarde, depois das aulas, lançámos mão à empresa. E digo lançámos porque o mano Zé, quando a coisa empinava para a asneira, não se fazia peco a ajudar.
Como pelas redondezas não havia patos e era arriscado ir até ao Covelo desinquietar os parrecos da tia Ana Costa, conjecturámos que pena de peru não deixaria de ter a mesma virtude. Ora de tal bicheza andava por ali à mão de semear: os perus da tia Isabel Caldeireira, vizinha e amiga, em bando, a engordar para as alheiras. Era vê-los a interromper o debicanço na ciscalhada dos sequeiros para lançarem um glu-glu gutural e enquanto armavam a sua cauda em leque com grande espavento para admiração das senhoras peruas E para nós é como quem diz: ora toma lá uma pena!

É o tomas! Quando tentávamos tomar conta da oferta, o raio dos bichos, em vez de colaborarem no empreendimento literário, desatavam em corrimaças doidas e barulhentas. Foi um trabalha dos diabos caçar um voluntário disposto a sacrificar uma mísera pena do rabo. À barulheira da criação acudiu a vizinha e dona dos bichos, que, com alterosa gritaria descompôs “o raio dos raparigos que só lhes dá para o mal”. À barulheira da criação e à gritaria da tia Isabel acudiu a mãe Lídia − “o que é, ó Isabel?!” − e foi por um triz que não nos habilitámos a uns tabefes. Mas quanto à pena… já cá canta!

Passámos à fase seguinte. Com a mais afiada das facas de cozinha, a de segar o caldo verde, cortámos a ponta da pena em bisel. Não deu! A faca estava muito romba. Fomos à pedra de amolar, que estava debaixo da varanda, dar-lhe fio. Segunda tentativa abortada. Os rabiscos numa folha de papel saíram mais largos e incertos que o carreirão de Arufe.

Quando estávamos a pique de desistir, ocorreu-me mais uma ideia brilhante. Sem a partilhar com o mano, às escondidas, fui-me à gaveta da cómoda onde o pai guardava a navalha da barba. Estava fora de questão que esta falhasse. Tentei a primeira vez: a navalha não çancou, antes, escorregou pelo canudo envernizado da pena. Uma segunda tentativa mais apurada, carregando com mais força. Plim! uma meia lua de aço fino com milímetro de diâmetro acabava de saltar da lâmina. Bonito serviço! Bem podia limpar as mãos à parede e desistir definitivamente da pena literata e da minha carreira nas letras.

Lá remeti a mal-aventurada navalha para a sua gaveta na esperança de que o percalço passasse despercebido.
Só que dia doze era a feira Bragança a que o pai não podia faltar para os negócios do soto. Quando vai para fazer a barba…

Bom. Apesar daquele seu feitio arrebatadiço, até àquele dia nunca ele me tinha tocado nem com a ponta dos dedos. E também ainda não foi dessa feita que me estreei. Mas, perante a fera catadura e a mão enorme erguida no ar, o meu susto não foi menor que o dos nautas perante o Adamastor na travessia do Cabo das Tormentas. Durante uns dias até perdi o apetite.

Balanço final: − primeiro − cinquenta mil réis para conserto dos danos na navalhinha, o que, para a altura, já era dinheiro; − segundo − por não ter alcançado a sua indispensável pena de pato convenientemente afiada, este escriba nunca chegou a escrever uns Lusíadas de jeito. Nem sequer uns sonetos como os do Bocage… Para grande perda das letras pátrias, diga-se de passagem.

10 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

As saudades que tinha de te ler! Bem-hajas por aceitares matar-nos as saudades!

É um mimo esta história da infância e das caraminholas que se nos metem na cabeça e nos levam à descoberta do que (não) queremos.

Um grande beijo

Anónimo disse...

Deixa lá Tonho
Tu puseste as bocas na navalha da barba eu pulas numa machada novinha em folha
acabadinha de comprar na feira dos Chãos. Galei-a com a da Teresa Brava e Olha! Resultado. Ficou com tanta boca que mais parecia uma velha sem dentes. Também fiquei com medo do meu
pai mas quando a viu e me perguntou o que tinha andado a fazer com ela deitou-se a rir e eu fiquei aleviada.
Um beijo para ti
Amélia

Américo Amadeu Pereira disse...

Oh TONHO! com que então uma navalha
de barba para afiar uma pena de perú e fazer dela uma pena de pato!
Também vivi uma experiência que me
deixou uma marca para toda a vida
só porque a curiosidade é maior que
a sensatez. Já não sei que idade
teria na altura só sei que andar
calçado não era comum naquela data.
Vai daí o meu tio João entrou lá em
casa e deixou à porta uma
machadinha que para os miudos é uma
tentação. Sem pedir licença peguei
na machadinha e fui experimentá-la
a cortar lenha. E cortava, cortava
tão bem que ainda hoje noto quando
olho para o pé direito e vejo como
ficou gravado o dedo grande de ter
sido rachado a meio.
Os meus cumprimentos
Américo

antonio disse...

Pois é!Todas as penas são penosas...teve pena o perú de naõ subsituir o pato.Da navalha de barbear sentiu pena o tio Jaime. Decepcionados, receosos, e cheios de pena, por não teres conseguido transformar a pena de perú em pena de escrever, e eu sentia pena, por não ter algo escrito por ti, com o que quer que fosse, para ler. É uma história de putos, igual a tantas outras, mas escrita por ti, sai do banal, e incentiva-nos à leitura agradávelmente.É bom saber que não puseste o blog. de lado, que não esquecestes os teus numerosos leitores fãs.
Como o Américo, também a mim ficou a marca de uma machada, enquanto tentava fabricar um pião de Amieiro.O Bocage não fazia nada como os outros, e surpreendia a todos. Cito aquela em que se agarrou à argola que servia para prender os cavalos, e murmurava: tem que sair...tem que sair... e as pessoas que o obserbavam, ficaram com pena, por não terem compreendido o que ele tentava fazer sair!
Obrigado pelas belas memórias e um abraço. António B. Pereira

Augusta disse...

Viva Tonho da tia Lídia!
Ora até que enfim! Já me tinha questionado acerca da tua ausência, e acredita que reli inúmeras vezes os teus contos anteriores para matar saudades. E olha, acredita que para mim, tu és o nosso Camões. Aquele, escreveu e elevou a alma do povo lusitano. Tu, escreves e elevas a alma do povo de Rebordainhos. Só um REBORDAINHENSE como tu, consegue passar para o papel de forma tão bela, o amor que nutre pela terra.
Por isso, a eterna gratidão que te oferecemos é inteiramente merecida.
Um beijo

Olímpia disse...

Que bom António, voltar a ler-te!
Acredita que já sentia muito a falta dos teus belíssimos textos.
Bem-hajas por nos enriqueceres com esses teus saberes e recordações.
Bjos
Olímpia

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho [Braz]
Augusta

Eu é que sou a responsável por esta ausência aparente do Tonho: tinha este texto em minha posse há já algum tempo, mas os afazeres profissionais não me dão descanso, por isso me atrasei na publicação.

Beijos

antonio disse...

Tás desculpada; sabes quanto é gratificante a leitura do nosso escrivtor preferido, contudo, também é certo que tu não vives só para nós,que apenas damos trabalho...obrigado pelos esclarecimentos. Beijos e até breve.

Céu disse...

António

Até me fizeste rir! Achei delicioso este teu testemunho de traquinice de criança. E depois deixa lá que te diga: Nada de modéstias, não terás sido nem um Camões ou um Bocage, mas foste tu próprio e como diz o António Braz, o nosso escritor preferido.
Espero que agora que retomaste a escrita para o Blog, não nos deixes outro tanto tempo à espera de mais.
Beijinhos
Céu

António disse...

Meus muito caros Rebordainhenses e amigos:

Muito grato pelas palavras elogiosas.
Tenho andado um pouco ausente, mais por preguiça que por outra coisa, embora acompanhe regularmente este blog da Fátima que eu já sinto como nosso.
É por essa mesma questão de preguiça que não falo individualmente com cada um. Mas a todos agradeço as amabilidades - então essa de me nomearem escritor é de arromba - e fico tão inchado que, como se diz em Rebordainhês, nem me cabe um tchítcharo no cu.

Abraços

António