SEI DE UM NINHO
por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Naquele tempo, no tempo de se ser criança em Rebordainhos, quando chegava a primavera, a criançada construía em torno dos ninhos toda uma cultura feita de respeito, ternura e… voracidade: ia-se aos ninhos, aprendia-se um ninho e sabia-se um ninho, tal como se ia à escola, se aprendia a tabuada e se sabia a tabuada ‒ uma verdadeira caminhada pela escola paralela da vida. Saber um ninho era receber em compêndio abreviado uma enorme lição sobre o prodígio das coisas naturais, as origens da vida e a ternura da maternidade. Era um misto de enlevo e… crueldade também, pois tão complexa e contraditória é a arte de viver!
Entre outras coisas aprendia-se a distinguir, dentro do vasto reino da passarada, como em cartilha venerável, a classe dos comestíveis (que, por vergonha, não digo quais eram nem por quê) da classe dos respeitáveis, quase sempre os mais pequerrichinhos e amigos do camponês, pela bicheza daninha que comiam ou pela companhia que, com a sua cantata, faziam ao lavrador na arada. E nesses não se tocava. Para além destes, havia ainda a casta mais restrita dos intocáveis, a que pertenciam a lavandeira e a andorinha, revestidos de uma aura de sacralidade. A lavandeira, pela companhia que fizera à Sagrada Família na sua fuga para o Egipto, apagando com o abanico da cauda as pegadas do santo burrinho que transportava o Menino fugitivo, para despistar os soldados que o Herodes malvado mandara em sua perseguição. A andorinha, a amorosa andorinha, porque era da família: morava em nossas casas, construindo aqueles formosos caçoilinhos de barro dependurados dos beirais dos nossos telhados. E ainda porque, apesar de envergar um discreto hábito de freira, tinha desempenhos de bailarina clássica, desenhando bailados caprichosos pelos céus da aldeia enquanto caçava os insectos que os primeiros calores primaveris faziam surgir de todo o lado. E aprendíamos ainda a arte de esperar: a longa espera desde o momento em que se descobria o ninho em construção, quando a pássara anda a engordar para pôr, até ao aparecimento dos ovinhos e o seu eclodir em pequenos mostrengos pelados, de órbita inchada e olhos cegos; depois abriam os olhitos e ganhavam o pêlo de burro, a seguir ficavam em canuto, até que adquiriam a plumagem definitiva que lhes permitia ir à vida.
E foi dos ninhos que eu aprendi uma das primeiras e mais sábias lições sobre a vida, a sua beleza e desilusões, ainda antes de entrar para a escola do Sr. Professor Ribom, quando da aldeia grande de Bragança me transplantei para a aldeia pequenina de Rebordainhos. Primeiramente através da dúzia de ninhos de andorinha que povoavam o beiral da casa da avó Adriana, na Portela. A gente quase lhes chegava da janela da sala; bastava esticar o braço e as criaturinhas escancaravam a goela desmedida e cor-de-rosa na expectativa do cibaco. Depois… Bem, depois…
Um dia cheguei a casa e declarei ufano, como quem acaba de descobrir terras do Prestes João: sei um ninho! E sabia, de facto. Foi assim:
Na Fonte da Vila, ali mesmo ao lado da fonte, havia (ainda deve haver) o Lameiro das Almas que o meu pai, com as ânsias dos seus primeiros ensaios de lavrador, trazia à renda. A metade de cima, para onde escorria a água sobeja da dita Fonte da Vila, andava de lameiro; a parte de baixo estava plantada de nabal. Um dia a Amélia da tia Isabel Caldeireira, que então morava connosco, levou-me com ela aos nabos e, ao chegar brindou-me: anda cá, vou-te ensinar um ninho. E foi assim que eu aprendi um ninho: lá estava ele ao toro de um cepo, aconchegado entre dois torrões, o montãozinho de ervas secas e, no centro, uma conchinha lavrada a preceito e acolchoada de penas, com quatro ovinhos brancos. Embasbaquei para o pequeno tesouro que agora era o meu tesouro. E mais, nunca lhe soube o nome!
A partir de então, quase não havia dia em que não me esgueirasse, cauteloso, pela Fonte do Espinheiro, para me furtar ao Prado, onde meu pai tinha o soto, até ao adro; depois, enfiava pela canada que arranca de À-Chave e era um ver-se-te-avias a verificar se o ninho ainda lá estava. E estava. A mãe pássara fugia assustada e eu, de cócoras, não me cansava de admirar a perfeição da conchinha tão redonda, tão macia de penas e os quatro ovinhos aconchegados, miniaturais, aguardando o aparecimento dos pequenos seres que traziam no seu bojo. A medo palpava a quentura dos ovos e a fofura do forro do ninho. E lamentava com os meus botões que a passarinha tivesse sido tão brutinha ao fazer a casa ali, no rés-do-chão, ao toro de um cepo e, ainda por cima, à beira do carreirão que atravessava o lameiro. E eu, mais brutinho ainda que a pobre ave, tocava nos ovos ignorando o risco de a mãe os aborrecer.
Aquilo ainda tinha que dar para o torto!...
E deu. Um dia, depois de uma daquelas zurvadas tão frequentes na primavera, como estiara pela tardinha, ainda deu tempo para ir visitar o meu tesouro secreto. Logo à chegada foi de mau agouro que a pássara não levantasse o costumado voo com o meu estrupido. Espreitei: os ovos estavam frios e o ninho todo encharcado da chuva. Logo vi: ou por causa das minhas mexidelas indevidas, ou por causa do trânsito pelo carreirão, a mãe tinha-os aborrecido. Ainda lá voltei mais tarde, na esperança de que a mãe pássara tivesse revogado a sua decisão de abandono da residência. Mas não: apenas o ninho meio esbarrondado, já com o ar de casa abandonada e as cascas vazias dos ovinhos comidos pelas formigas. Mordi os beiços numa grande vontade de choro, como se a avezita me tivesse atraiçoado sem que ao menos eu tivesse tido ocasião de os ver nascer e acompanhar no seu crescimento: cegos e pelados quando largam a casca, em pêlo de burro a seguir, depois em canuto e, finalmente, emprumados, já prontos para irem à vida.
Em contrapartida, comecei a aprender quão efémeras são as nossas ilusões e como é frágil o sopro da vida que o mais ligeiro percalço pode apagar.
Entre outras coisas aprendia-se a distinguir, dentro do vasto reino da passarada, como em cartilha venerável, a classe dos comestíveis (que, por vergonha, não digo quais eram nem por quê) da classe dos respeitáveis, quase sempre os mais pequerrichinhos e amigos do camponês, pela bicheza daninha que comiam ou pela companhia que, com a sua cantata, faziam ao lavrador na arada. E nesses não se tocava. Para além destes, havia ainda a casta mais restrita dos intocáveis, a que pertenciam a lavandeira e a andorinha, revestidos de uma aura de sacralidade. A lavandeira, pela companhia que fizera à Sagrada Família na sua fuga para o Egipto, apagando com o abanico da cauda as pegadas do santo burrinho que transportava o Menino fugitivo, para despistar os soldados que o Herodes malvado mandara em sua perseguição. A andorinha, a amorosa andorinha, porque era da família: morava em nossas casas, construindo aqueles formosos caçoilinhos de barro dependurados dos beirais dos nossos telhados. E ainda porque, apesar de envergar um discreto hábito de freira, tinha desempenhos de bailarina clássica, desenhando bailados caprichosos pelos céus da aldeia enquanto caçava os insectos que os primeiros calores primaveris faziam surgir de todo o lado. E aprendíamos ainda a arte de esperar: a longa espera desde o momento em que se descobria o ninho em construção, quando a pássara anda a engordar para pôr, até ao aparecimento dos ovinhos e o seu eclodir em pequenos mostrengos pelados, de órbita inchada e olhos cegos; depois abriam os olhitos e ganhavam o pêlo de burro, a seguir ficavam em canuto, até que adquiriam a plumagem definitiva que lhes permitia ir à vida.
E foi dos ninhos que eu aprendi uma das primeiras e mais sábias lições sobre a vida, a sua beleza e desilusões, ainda antes de entrar para a escola do Sr. Professor Ribom, quando da aldeia grande de Bragança me transplantei para a aldeia pequenina de Rebordainhos. Primeiramente através da dúzia de ninhos de andorinha que povoavam o beiral da casa da avó Adriana, na Portela. A gente quase lhes chegava da janela da sala; bastava esticar o braço e as criaturinhas escancaravam a goela desmedida e cor-de-rosa na expectativa do cibaco. Depois… Bem, depois…
Um dia cheguei a casa e declarei ufano, como quem acaba de descobrir terras do Prestes João: sei um ninho! E sabia, de facto. Foi assim:
Na Fonte da Vila, ali mesmo ao lado da fonte, havia (ainda deve haver) o Lameiro das Almas que o meu pai, com as ânsias dos seus primeiros ensaios de lavrador, trazia à renda. A metade de cima, para onde escorria a água sobeja da dita Fonte da Vila, andava de lameiro; a parte de baixo estava plantada de nabal. Um dia a Amélia da tia Isabel Caldeireira, que então morava connosco, levou-me com ela aos nabos e, ao chegar brindou-me: anda cá, vou-te ensinar um ninho. E foi assim que eu aprendi um ninho: lá estava ele ao toro de um cepo, aconchegado entre dois torrões, o montãozinho de ervas secas e, no centro, uma conchinha lavrada a preceito e acolchoada de penas, com quatro ovinhos brancos. Embasbaquei para o pequeno tesouro que agora era o meu tesouro. E mais, nunca lhe soube o nome!
A partir de então, quase não havia dia em que não me esgueirasse, cauteloso, pela Fonte do Espinheiro, para me furtar ao Prado, onde meu pai tinha o soto, até ao adro; depois, enfiava pela canada que arranca de À-Chave e era um ver-se-te-avias a verificar se o ninho ainda lá estava. E estava. A mãe pássara fugia assustada e eu, de cócoras, não me cansava de admirar a perfeição da conchinha tão redonda, tão macia de penas e os quatro ovinhos aconchegados, miniaturais, aguardando o aparecimento dos pequenos seres que traziam no seu bojo. A medo palpava a quentura dos ovos e a fofura do forro do ninho. E lamentava com os meus botões que a passarinha tivesse sido tão brutinha ao fazer a casa ali, no rés-do-chão, ao toro de um cepo e, ainda por cima, à beira do carreirão que atravessava o lameiro. E eu, mais brutinho ainda que a pobre ave, tocava nos ovos ignorando o risco de a mãe os aborrecer.
Aquilo ainda tinha que dar para o torto!...
E deu. Um dia, depois de uma daquelas zurvadas tão frequentes na primavera, como estiara pela tardinha, ainda deu tempo para ir visitar o meu tesouro secreto. Logo à chegada foi de mau agouro que a pássara não levantasse o costumado voo com o meu estrupido. Espreitei: os ovos estavam frios e o ninho todo encharcado da chuva. Logo vi: ou por causa das minhas mexidelas indevidas, ou por causa do trânsito pelo carreirão, a mãe tinha-os aborrecido. Ainda lá voltei mais tarde, na esperança de que a mãe pássara tivesse revogado a sua decisão de abandono da residência. Mas não: apenas o ninho meio esbarrondado, já com o ar de casa abandonada e as cascas vazias dos ovinhos comidos pelas formigas. Mordi os beiços numa grande vontade de choro, como se a avezita me tivesse atraiçoado sem que ao menos eu tivesse tido ocasião de os ver nascer e acompanhar no seu crescimento: cegos e pelados quando largam a casca, em pêlo de burro a seguir, depois em canuto e, finalmente, emprumados, já prontos para irem à vida.
Em contrapartida, comecei a aprender quão efémeras são as nossas ilusões e como é frágil o sopro da vida que o mais ligeiro percalço pode apagar.
6 comentários:
Tonho
Esta tua história é de uma ternura enorme! Bem-hajas por ela.
Bem-hajas, ainda, pela belíssima fotografia que encima o artigo. Com ela, esta página ganhou dois poemas.
Beijos
Tonho:
Mais uma vez que digo que não me canso com a leitura deste teus tesouros.
E aposto que, não ensinaste o ninho a mais nenhum garoto. O segredo ficou entre ti e a sra Amélia, não?
Beijos
Mais um texto lindíssimo do amigo " Tonho" de Rebordaínhos. Degusto os seus textos como se das melhores iguarias se tratassem. E são-no mesmo! Que delícia! Recordei Miguel Torga " Sei um ninho..." e também por isso agradeço ao António.
Escreva mais, escreva muito que tem aqui leitora assídua.
Bem-haja!
Abraço fraterno
Fátima:
Magnífico o teu trabalho de editora gráfica. Destas linhas simples fizeste uma obra de arte.
Obrigado.
Um beijinho.
Um agradecimento sincero também para as minhas leitoras indefectíveis que, com os elogios reiterados, cultivam o meu ego de escrivão.
Muitos beijinhos reconhecidos.
António:
Como tenho andado um pouco arredada, só hoje li este teu magnífico texto (mais um!...), bem apropriado à estação em que estamos a entrar, e que é um símbolo daquilo que nós temos de mais precioso: a vida.
Bem-hajas
Bjos
Olímpia
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