sábado, 14 de abril de 2012

QUEM NÃO SE LEMBRA?


Depois de arrumada a cozinha do almoço pascal, as raparigas corriam para a eira onde os rapazes já se entretinham a jogar à panela. Começavam, então, os jogos de roda, folguedo que durava até findar a tarde, em tripa forra de alegria que fizesse esquecer os rigores quaresmais. Guardiães da tradição, os mais velhos assistiam, incentivando a que se dançasse e cantasse com garra, enquanto os mais novos, em rodas mais pequenas, iam reproduzindo aquilo que viam, para poderem fazer bem quando chegassem à idade. Que me lembre, os pequenos só eram integrados num das danças, talvez porque o assunto fosse religioso e eles fizessem lembrar o menino Jesus:

Eu também sou lavadeira
Lavo no rio Jordão
Quando estou a lavar
Aparece-me S. João.

Nossa Senhora chamou-me,
Chamou-me eu vou com ela,
Ela é minha madrinha
E eu sou afilhada dela.


Nossa Senhora faz meia,
Faz meia feita de luz
O novelo é Lua cheia
E as meias são para Jesus.

Nossa Senhora é uma rosa,
O Menino é um cravo,
S. José é jardineiro
Desse jardim tão sagrado.

Lembram-se? Eram duas rodas concêntricas: os mais novos dentro, os mais velhos fora. De mãos dadas, as rodas iam girando durante os dois primeiros versos das quadras (bisados); ao terceiro verso, os de fora aproximavam-se e unificavam a roda, pondo os arcos que os seus braços formavam sobre o peito de uma criança da roda de dentro. Ao quarto verso soltavam as crianças e recuavam (estes versos e respectivos movimentos também eram bisados). Depois recomeçava tudo.

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Contrariamente a esta, a esmagadora maioria das canções tinha carácter profano, celebrando uma memória que vem dos confins dos tempos: a ressurreição da natureza, de que o ser humano é parte inteira e actuante. É por isso que as nossas cantigas falam de amores e de casamentos, em harmonia com aquilo que sucede com os outros seres que nos rodeiam:

Oh que festa nós fairemos
Quando nos formos casar
E os sinos da nossa aldeia
Tocarão até rachar

E a sineta faz dlim, dlim
E o sino faz dlim, dlim, dlão
E a rabeca zirra, zirra
E o violão faz dlão, dlão, dlão

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Se tu és o meu benzinho
Dá-me cá os braços teus
Se não és o meu benzinho
Ora vai-te embora, adeus, adeus!

Nesta faziam-se duas filas paralelas, uma de rapazes e outra de raparigas. Antes de começar, alternadamente, eles ou elas distribuíam entre si, e em segredo, os membros da outra fila. Depois, cantavam todos as duas primeiras quadras. Supondo que tinham sido as raparigas a fazer a distribuição, eram os rapazes que tinham de ir tentar a sua sorte. Um deles dirigia-se a uma rapariga e perguntava-lhe: “tu queres-me? E os dois davam uns passos de dança enquanto cantavam a terceira quadra. Se tivesse acertado, rapaz e rapariga trocavam de fila; se não, ambos voltavam ao lugar original. Este jogo de roda só terminava quando o último rapaz acertasse com a última rapariga. Depois repetia-se, cabendo dessa vez às raparigas perguntar “”tu queres-me?”

E assim se faziam alegres os nossos dias. Outras cantigas reservo-as para outros artigos.

19 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Um post muito interessante retratando usos e costumes que nunca conheci.
Um abraço e bom Domingo

antonio disse...

Lembramos todos... aqueles que o viveram, que impacientes esperavam a chegada da Segunda de Páscoa, e, com simplicidade, acorriam às eiras onde se reuniam velhos e novos comungando da mesma harmonia, sem invejas nem hipocrisia...apenas o desejo de confraternizar com todos sem excepção... não se olhava para o que vestíamos, se íamos calçados ou descalços, a balanços patrimoniais,havia uma só alma repartida pelos corpos, inerente da pureza, da sinceridade e do amor fraternal. Meu Deus como as pessoas são hoje diferentes! Mesmo aquelas que viajaram através destes e outros encantos... sobretudo estas! Conheceram, amaram, e se transformaram, como se a metamorfose dos seres humanos viesse alterar o que quer que seja, à morte que nos espera a todos!?
Cantarolar estas e outras quadras, que nos purificaram,é hoje, para alguns, vergonhoso, arcaico, sem interesse. Respeitem as nossas saudosas recordações... passem e virem a cara se assim o entenderem, mas, nunca, nunca se esqueçam, que um dia todos nós partimos, e, nem o dinheiro, nem os títulos, orgulho ou avareza deixarão de partir connosco.
Obrigado a quem propaga a beleza do nosso passado. Beijos Fátima

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Cada terra com seu uso... são coisas muito singelas, as nossas: cantávamos enquanto dançávamos, sem acompanhamento musical nenhum, porque ninguém tinha dinheiro para comprar, sequer, uma guitarra. Também por isso, ninguém sabia tocar. Mas éramos felizes, e isso é que importa.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Gostei tanto daquilo que escreveste! Obrigada.

Beijos

Olímpia disse...

É com saudade que recordo os jogos de roda na eira.Este programa estava bem definido no nosso pensamento,e nenhuma solicitação, por mais sedutora que fosse, nos fazia mudar de propósito.
Bjos

Olímpia

Ribordayn disse...

Tonho, esse teu texto está primoroso. Lamentável que os seres humanos estejam às portas da morte e pensem apenas em amealhar mais e mais bens materiais. Luxúria, avareza, ganância e outros predicados são comuns à maioria dos seres humanos, como se fossemos eternos ou pudessemos levar os bens materiais para outro plano. Fazer o quê? Temos um prazo de validade e quando este chegar, nenhum de nós escapa de seu destino.
Parabéns à Fatima por manter vivo este cantinho onde nós podemos recarregar nossas baterias de lembranças felizes de nossa infância.

Abração

Lurdes disse...

Tenho vagas memórias desses jogos de roda na eira... que pena ter-se perdido essa linda tradição.
Obrigada Fátima por nos trazeres à memória esses tempos em que todos se uniam para festejar a Páscoa... Sim éramos felizes com o pouco que tínhamos.
Beijos

Lurdes

Fátima Pereira Stocker disse...

Olímpia

E haveria alguma coisa mais apelativa do que os jogos de roda?

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Ribordayn

Obrigada por mim e por aquilo que escreveste ao Tonho: é bom ver que se estabelece diálogo entre as pessoas.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Lurdes

É uma grande pena, sim!

Creio que o facebook está com nova política, porque antes conseguia entrar e ver os artigos que ias publicando, mas agora já não. Não sei se tens actualizado a página, e vejo-me impossibilitada de dar a indicação, por causa disso. Quando publicares não queres dar tu a notícia aqui?

Beijos

Augusta disse...

Quem não se lembra? Os mais novos seguramente, porque não têm a oportunidade (nem o gosto, atrevo-me a dizer) de ter essas memórias.
Já se fizeram várias tentativas de fazer dessas memórias novamente uma realidade atual (como me custa escrever assim!!!). Mas a verdade é que "os novos", aqueles que ainda há, não evidenciam vontade de as integrar, afirmando que "não sabem".
Por outro lado, também já poucos "novos" existem. Os que há, muitos deles estão ausentes, ou apenas pertencem à aldeia por vínculos familiares, e não tiveram oportunidade de criar, apreender e cultivar essas raízes que a todos nós, aos mais velhos, pertencem.
Mudando de rumo, mas mantendo a rota, relembro também a farfalhão: "entra ó farfalhão ó meio, grande data vai levar..."; e "ao passar a ribeirinha, onde a água sobe e desce..."; " a rolinha andar, andou..."; " ai se o loreiro não tivesse", etc, etc.
E lembro também que no mesmo dia, e habitualmente em simultaneo, se jogava também ao cântaro.
Enfim, belos tempos que, entendo, todos devemos cultivar, preservar e, acima de tudo transmitir. Talvez assim consigamos esquecer, ainda que por pouco tempo, as dificuldades que na atualidade, a todos atingem (ou só a alguns, porque os outros têm adaptações).
Beijos a todos, especialmente para ti, Fátima, que teimas e persistes na manutenção desta página

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Os novos que há já não nasceram lá e a maioria vai no Verão, não na Páscoa. Confesso que me roo por dentro. Os dedos das mãos devem bastar para contar os novos que lá vivem e, mesmo assim, quase todos rapazes. Infelizmente, creio que é das coisas que temos que dar como irremediavelmente perdidas. Assim que nós morrermos não sobrará ninguém para dizer como foi. Daí a necessidade dos registos, mas que não podem ser só escritos: isto precisa de ser filmado, para se verem os passos e se ouvir a música. Mas sermos os velhos a dançar fica um bocadinho pateta, por isso não sei que volta se pode dar ao assunto.

Lembraste bem as cantigas. Já tinha publicado a do loureiro e a da ribeirinha, as outras hão-de ir aparecendo (tenho que fazer render o peixe!)

Sobre o "acordo ortográfico" apetece-me parafrasear o nosso jogo: "que seja morto e enforcado co'as cordinhas de Santiago.

Beijos

Lurdes disse...

Fátima
Não sei o que se passa com o Facebook, mas não consigo publicar (diz-me que ULR está bloqueado) eu consigo aceder ao Fecebook através do blogue, mas não sei se é porque eu tenho conta no facebook. Outra coisa quando entro no facebook pelo blogue abre na mesma página, ou seja por cima da página do blogue, quando deveria abrir numa janela ao lado. Logo vou verificar o link a ver o que se passa...
Deixo aqui o link do facebook a ver se assim consegues ver?
https://www.facebook.com/groups/111711015528476/

Lurdes disse...

Ainda cá volto... para abrir o link do facebook: seleccionar o link e depois clicar com o botão do rato lado direito e abrir a ligação num separador novo.
Desculpa se estou a ser muito minuciosa.
Beijos
Lurdes

eduarda disse...

Fátima
Que bom ter essas memórias, e que riqueza!
Essa é a diferença entre a tua e a minha mocidade, pois as modinhas da cidade são tão pobres que nem nós os nativos conseguimos lembrá-las. Mas que raiva, não ter nascido por bandas onde tivesse aprendido a beleza do natural.
Por aqui, como sabes, cada um no seu canto, é assim hoje e foi ontem do mesmo modo. Daí que... lembranças, são poucas as que valham a pena. Bem hajas pelo espólio que nos apresentas.
Um beijinho

Américo Pereira disse...

Fátima,o blog de Rebordainhos tem
sido, e continua a ser(graças a si)
o grande mensageiro da nossa terra.
Por favor, nunca o deixe cair.
Tem sido incansável pelas horas que
lhe dedica sem nenhuma recompensa,
mas acredite que é uma fonte de convívio para nós que estamos longe
e podemos recordar a nossa terra e
costumes. Sou um visitador assíduo
embora por vezes nada comente.
Tenho lido todos os artigos sempre com aquela satisfação de estar a
viver na terra onde nasci e tudo recordar. Também tenho aprendido
com muitos artigos que tem escrito
e é por tudo isto que estou muito
agradecido. Os meus cumprimentos.

Fátima Pereira Stocker disse...

Lurdes

Mesmo seguindo os teus passos, o facebook continua a exigir-me o registo, e isso é algo que não quero fazer. Paciência!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Eduarda

É verdade que, quanto a isso, me sinto uma felizarda. De qualquer das formas, tendo em conta as tuas raízes, e apesar da distância, pudeste conservar outras memórias. Não é verdade que até fazes um bom folar?

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Sr. Américo

As suas palavras são recompensa bastante. Bem-haja!

Beijos