terça-feira, 2 de junho de 2015

SEGADORES

por: orlando santos martins
parte iii

Ao longe vislumbrava-se o cotovelo de um caminho cinza-alaranjado com dois trilhos paralelos bem vincados, sulcados pelos carros de bois que por ali passavam e ladeados nas bermas por urzes, giestas, carquejas e pequenas ervas rasteiras, vindo da Fonte do Sapo e que, àquela hora, alimentava a ânsia e a curiosidade do Dércio, de alcunha o “raposas”.
Ó Dércio, deixa lá o caminho e toca a trabalhar. – Repreendeu o Sérgio Malhadinhas. – O jantar está quase a chegar!
Já não é sem tempo, sabes que a comida está para este corpito como a igreja está para a alma. – Respondeu o Dércio, esboçando um risinho.
Já que calha a talho de fouce, diz aí ao Anacleto para trazer o pipo do vinho antes que fique em gelo, que uma rodada vai de certeza, e o capataz Humberto também já está com sede. – Acrescentou o Jorge no mesmo ar brincalhão.
Os intensos e abrasadores raios de sol dardejavam agora a pique sobre a seara, tornando-a mais áspera e libertando um fino pó que se entranhava nos poros da pele curtida e secava a garganta dos segadores. As costas vergadas ensopavam-se de suor, as camisas ao longo da coluna pareciam de uma cor mais escura e nas axilas formavam dois lagos que as gotas caídas da testa e do pescoço alimentavam como se de uma fonte se tratasse.
O passar do pipo, além de proporcionar uma breve pausa, endireitava as costas vergadas dando-lhes um retorno à sua posição inicial e aliviando por breves momentos a intensa dor dos quadris.
Já lá vem… Já lá vem…. - Gritou o Dércio.
No cotovelo do caminho, que o Dércio não esquecia nem largava há já algum tempo, viam-se agora três vultos indefinidos que mais se assemelhavam a pequenas figuras da ilha de Páscoa.
À medida que os vultos se aproximavam, tornavam-se mais definidos e iam ganhando os contornos de três mulheres com cestos de verga à cabeça cobertos com toalhas e à cintura, com o braço metido na asa, equilibravam pequenas cestas de vime onde transportavam as louças e a comida para a merenda que, dada a distância a que ficava a casa, era já levada para o campo, ficando à guarda dos segadores para mais tarde.
Distinguia-se ainda, pendurado num braço das figuras caminhantes e assente no quadril, um cântaro que, pelo aspecto e pela tampa de cortiça que lhe tapava o bocal, devia trazer a sopa.
Eram a Maria, a Ana e a Lúcia que carregavam o jantar e, nessa altura, quase todos os segadores suspiraram e lançaram um breve olhar de contentamento para as mulheres e os cestos que transportavam imaginando com água na boca, mas ainda sem cheiro, o conteúdo dos mesmos.
Arrastavam-se vagarosamente pelo caminho até desaparecerem na curva do “Pórto” que contornava o lameiro do tio Zé Çuca, onde era frequente ver o seu filho Fernando a guardar as vacas enquanto pastavam, atravessado pelo meio por um ribeiro permanente, mas com pouco caudal no verão, que corria até à pequena povoação dos Vales.
Após alguns minutos, viam-se os cocurutos das toalhas, com padrões coloridos que tapavam os cestos que iam à cabeça das mulheres, surgirem lentos e com a cadência de passos lentos por cima das silvas que cobriam a parede Este que servia de socalco à cova de Vila Seco.
Também elas já tinham avistado os segadores e a Maria desabafou, escondendo o cansaço:
Porra, … até que enfim. Já chegámos. Vós não sabeis o que é que estes “carvalhos” esta palavra era suavizada pela presença de gente de fora – me fizeram a ano passado.
Então o que foi? – Perguntou a Lúcia.
Olha, vê lá tu que um dia fui levar o jantar pensando que estavam no “Pórto”, chamei, chamei e nada!
Carvalho nisto, onde terão ido? – Pensei. – Vou-me até à “Renda” que devem estar lá. Um” caralicho”! Nem vê-los. Mas que raio, onde se terão metido? Já toda arreliada, fui à “Penatoura”… também nada! Ó meu Deus! E agora que faço? Raios partam a minha vida. Desabafei estas e outras que me vieram à cabeça, e que Deus me perdoe.
E então? – Quis saber a Lúcia.
Olha, fui dar com eles todos esparramados na touça, à sombra, a afiarem as fouces.
Coitada! – Disseram em uníssono a Lúcia e a Ana.
Ó António. Cá estamos. – Gritou a Maria. – Onde queres que pousemos os cestos para jantar?
Eia, mulheres, estais todas suadas, Reparou. – Olha, ponde os cestos debaixo daqueles carvalhos, que sempre jantamos à sombra. – Disse, apontando para a pequena touça sobranceira à terra.
Esta já está. – Suspirou a Lúcia tirando um lenço do bolso da frente do avental e enxugando com ele a testa.
Deitaram mãos aos cestos que traziam à cabeça para os descerem. – Ajuda aqui, António. Pediu a Maria enquanto pousava devagar toda a carga, como se de porcelana se tratasse, enquanto ia libertando algumas interjeições de alívio. Retiraram da cabeça as pequenas rodelas feitas de toalhas pequenas que se pareciam com regueifas amassadas e lhes permitiam o equilíbrio dos pesos que levavam e evitava alguma dor e esfoladelas provocados pelos fundos dos cestos de verga.
As toalhas foram estendidas numa zona mais chã da touça, onde algumas folhas amareladas e avermelhadas caídas foram varridas pelos pés da Maria, e nas bordas foram colocadas pequenas pedras para evitar que a mais pequena brisa pudesse enrolar as toalhas estendidas para o jantar.
Nelas eram colocados os pratos, os talheres e os copos, formando um posto de degustação que era religiosamente ocupado pela hierarquia do grupo que se tinha composto.
A canhona refogada, as batatas cozidas, o pão, a sopa, o vinho e a água e outros condutos já se encontravam estrategicamente colocados, convidando o pessoal ao respectivo repasto que antecederia uma pequena sesta.
O António fez sinal ao capataz e o Humberto chamou o seu pessoal para o jantar.

Então rapazes, não estavam à espera disto?... Pois então vamos lá.
Após o fundo dos tachos ter sido posto a descoberto pelos esfomeados segadores e os pipos de vinho se encontrarem mais leves que uma pena de rola caída por perto, viam-se, lentamente e numa cadência dormente, os segadores levantarem-se para desentorpecer as pernas e procurarem um pequeno leito para descanso por entre a folhagem que tinha caído e as sombras mais acolhedoras.
A Maria, a Lúcia e a Ana, depois de arrumarem toda a louça, dispuseram-se a separar um cesto com pão, carne de porco, bacalhau desfiado, algumas azeitonas azedas como fel e dois ou três queijos de cabra secos que daria para a merenda do rancho de segadores, uma vez que, dada a distância, não voltariam a trazer mais mantimentos, como era costume, regressando a casa para a preparação da ceia.
Aproveitando a pequena sesta, aproximadamente uma hora, alguns segadores aproveitavam para encontrar, nas giestas mais acima, um lugar discreto e seguro para satisfazerem as suas necessidades físicas, iam a campo, como era costume dizer.
****
De regresso à seara lá vinham eles, uns mais ensonados, outros com ar de resignação, para continuarem a sua luta até o sol desaparecer mesmo por detrás do pico da fraga da Anta.
A tarde decorreu calma, com o sol cada vez mais abrasador e cada seitourada tornava-se mais penosa à medida que iam avançando cova acima.
Timidamente, antes da merenda, ainda tentaram uma moda da tarde, mas as vozes em surdina, como que arrastadas pelas gotas do suor, foram esmorecendo à medida que o cansaço ia tomando conta destes heróis de outrora.
Com o sol prestes a deitar-se, arrumaram todos os apetrechos e o cesto vazio da merenda e rumaram caminho fora em direcção à povoação.
Já dentro de portas, alguns aproveitaram para se reabastecer de tabaco e talvez o reforço de um copito na taberna onde o Sr. Álvaro, na de baixo, e o Sr. António “Trocho” na de cima, aguardavam ansiosamente por estes finais de tarde com clientela fora do habitual.
Em casa da Maria, ultimava-se a ceia e preparava-se o dia seguinte.

22 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Orlando

As mulheres de Rebordaínhos têm, todas elas, problemas graves de ossos. Suportar aqueles pesos enormes à cabeça - e manter os cestos equilibrados - durante percurso de vários quilómetros enquanto, nas mãos, seguravam as latas do caldo é um esforço brutal e de uma violência atroz. A tua mãe contou-me o episódio que tu aqui referiste: de andar à procura dos segadores pelas terras dos confins do termo e olha, foi ela mais capaz de se rir do que eu, que me doeu a alma.

A homenagem que fazes aos teus pais - e a quem os costumava (e podia) ajudar nessas alturas, a tua tia Lúcia e a Aninhas da Eira - são justas e nunca é demais lembrá-los.

O trababalho agrícola, feito como os nossos pais o faziam, era de grande violência e de muita despesa. Contudo, é impossível tirar da memória do ar de satisfação com que terminavam cada uma das etapas: tinham garantido o sustento da família por mais um ano. E esse grato prazer era tudo quanto lhes importava. Quanto lhes devemos!

Deus te pague por este belíssimo registo.

Um grande beijo

Anónimo disse...

Olá Fátima,
E a todos

Em primeiro lugar queria agradecer à Fátima a ajuda e a força que me deu par me espevitar um pouco. Agradecer-lhe ainda ter-me enviado a letra da moda dos segadores que transcrevi.

Obrigado por tudo

Orlando Martins

Anónimo disse...

António,

Fizeste-me vir as lágrimas.

Mas, prá frente. Como estás, ainda jogas futebol daquela maneira que só tu sabias fazer?
O teu problema na coluna já passou?

Um grande abraço também para ti deste teu amigo.

Orlando Martins

Elvira Carvalho disse...

Mais um excelente texto. Se possível, gostaria de saber o significado de canhona.
Quando pequena transportei muitas bilhas de água, assim à cabeça. Com uma "rodilha" feira com uma toalha velha.
Um abraço e parabéns pelo texto.

Anónimo disse...

Canhona:

Em Trás-os-Montes canhona é uma ovelha já com uma certa idade.

Anónimo disse...

Este último quadro das cenas da vida rural no tempo do ditador Salazar conclui, com chave de oiro e com o brilho das espigas ao sol, um tríptico que muito honra quem o pintou, mas também enriquece espiritualmente todos aqueles que tiveram a felicidade de o ler.
Dito isto, e não querendo parecer chatinho, deixem-me fazer um pequeno reparo à forma displicente com que alguns comentadores deste blog trataram a minha proposta de fazer uma cooperativa agrícola em Rebordainhos. O que proponho é uma cooperativa de produção agrícola e não o estabelecimento de índole comercial que terá existido em Rossas de Cima, onde a alta burguesia que o dirigia só procurava o lucro fácil à custa da exploração do trabalho do lavrador.
Uma cooperativa ou é comunista ou não é cooperativa!
A exploração e os trabalhos pesados só poderão acabar no dia em que termine o direito à propriedade privada.
Desde as terras, as foices, os martelos, as roçadouras, até às roupas que trazemos no corpo e aos pares de botas de trabalho, será tudo da cooperativa. Então, sim, mesmo nas terras mais pobres, correrá o leite e o mel!

Joaquim da Torre do Sino

Anónimo disse...

Orlando, bom dia.

A Fátima já te respondeu. Sou eu, sim, a Amélia da tia Teresa! Tenho vontade de te ver e de te abraçar.
Narraste, e muito bem, um longo dia de segada. Agora, tens que narrar o dia da malha certo?

Beijocas

Amélia

Anónimo disse...

Amélia,

Tu és tramada, mas as musas ainda não vieram ter comigo.

Muitos beijos

Orlando

Anónimo disse...

Joaquim da Torre do Sino,

Rossas é em cima porque em baixo, é Santa Comba!



Filinto disse...

Obrigado Orlaando pela tua "segada".
Perdoa-me que te acrescente um nome aos trabalhadores e mulheres que referes. O teu pai e a tua mãe tinham muita estima pelo irmão da Aninhas da Eira, o ARMINDO. Acho que às vezes era um braço direito dos teus pais.
Quanto à cooperativa de Rossas é pena o teu pai não ouvir esses comentários de meia-tijela para ele lhes poder responder, pois eu apenas reproduzi o que teu pai referia e acho que ele nunca se sentiu explorado.
Vamos à "malha" porque eu apenas gostava de andar aos sacos, pois a palha e os "coanhos" faziam-me comichão.
Filinto

Anónimo disse...

Sr, Anónimo,

Muito obrigado pela correção. De qualquer maneira, o sentido e a verdade da mensagem mantêm-se. É como nós dizermos que um neo-zelandês, quando se encontra na sua terra natal, está de pernas para o ar, e este responder que quem está de cabeça para baixo somos nós- as duas perspetivas são válidas. Aqui, o que interessa é que todos sabem onde fica Rossas de Cima.

Joaquim do Sino da Torre

antonio disse...

Orlando: saboreei esta terceira parte como o manjar das outras duas... explendido! Como consegues recordar-te dos nomes desses herois segadores, do Brinço, neste caso, pois também havia camaradas de Ala, Cabanelas etc.? E que narrativas detalhadas tão sublimes!Ser poeta é um dom. Forte abraço

Anónimo disse...

António,

Mandei um comentário para o teu blog de Murçós, mas não sei se o recebeste.

Confirma-me

Um abraço

Orlando Martins

antonio disse...

Sim recebi e estou-te imensamente grato pelo conteudo e visita. Abraço

Olímpia disse...

Orlando,
raramente me conseguem deixar sem palavras. Tu fizeste-o.
Lindos,lindos, lindos, estes teus textos. Que belos retratos escritos!
As tuas descrições são tão reais e pormenorizadas que, ao lê-las, senti que era mais uma personagem que, ao longe, observou todas as cenas.
Bem-hajas

Aguardamos por mais!

Bjos

Olímpia

Anónimo disse...

Olá Olímpia,

Ando a pensar cá numa, que só com a tua autorização e da Pachica é que a poderei escrever. Atua mãe ria-se às gargalhadas.

Depois falamos

Beijinhos e Obrigado

Orlando Martins

Anónimo disse...

Orlando,
Se é o que estou a pensar, esse episódio passou-se com a Lena e Olimpia e não com a Pachica.

Gostava que publicasses!

bjs.

Amélia

Olímpia disse...

Sim, se é também o que eu penso, foi com a Lena que se passou esse episódio. Só a ti o confessámos e tu...contaste às nossas mães.
A tua, na sua maneira tão caraterística, tratou de nos fazer passar por uma vergonha. Também ela se divertiu.

Beijo

Olímpia

Augusta disse...

Orlando:
Antes da malha vem a acarreja. Por isso tens mais um tema para escrita. Venha daí que nós agradecemos.
Beijos e, tal como a Amélia tenho vontade de falar contigo.

Filinto disse...

Orlando
Razão tem a Augusta para te lembrar a "acarreja". O ARMINDO foi o braço direito do teu pai em muitos dos trabalhos como a acarreja, malha, batatas... Grande Armindo que me cortou o cabelo "à escovinha" que eu pensei ser ser um penteado moderno. Esse grande barbeiro merece aparecer no teu futuro texto.
Filinto

Anónimo disse...

Amigos bloguistas,

Reconheço que errei.
Nos meus preconceitos a língua mirandesa não passava de uma mistura de galaico-português com leonês medieval, falada por meia-dúzia de campónios em aldeias esquecidas no tempo, situadas para lá dos montes, nos confins da civilização! Eis senão quando a palavra CANHONA, feia e áspera como lixa grossa, feriu-me os olhos, por mais do que uma vez, quando a li, no tríptico literário da autoria de Orlando Martins sobre as segadas de antigamente. Com a exceção da senhora comentadora Elvira, nota-se que para o ilustre público deste blog dizer “canhona” ou “canhonha” é tão familiar como dizer os substantivos comuns “ovelha” ou “cabrito”.
Na minha cabeça fez-se luz: o mirandês é, afinal, uma língua tão viva como o Português.
Se os povos do nordeste transmontano foram tão oprimidos por Salazar e Caetano que, durante quase meio século, não tiveram direito de se exprimirem na sua própria língua, é da mais elementar justiça que agora, fazendo uma discriminação positiva, o português seja varrido das escolas primárias, secundárias e superiores transmontanas nos próximos cinquenta anos!
Neste enquadramento de vítimas da tirania cultural, os mirandeses, com a sua língua, estão ao mesmo nível dos povos africanos oprimidos que falam umbundu, kimbundu, kilongo, bitonga, balanta, fula, etc, mas acima dos autores primitivos das pinturas rupestres de Vila Nova De Foz Côa.

Joaquim do Sino da Torre

Elvira Carvalho disse...

Muito obrigada pela explicação.
Um abraço e bom fim de semana