por: orlando santos martins
parte iii
Ao longe vislumbrava-se o cotovelo de um caminho cinza-alaranjado com
dois trilhos paralelos bem vincados, sulcados pelos carros de bois que por ali
passavam e ladeados nas bermas por urzes, giestas, carquejas e pequenas ervas
rasteiras, vindo da Fonte do Sapo e que, àquela hora, alimentava a ânsia e a curiosidade
do Dércio, de alcunha o “raposas”.
Ó Dércio, deixa lá o caminho e toca a
trabalhar. – Repreendeu o Sérgio Malhadinhas. – O jantar está quase a chegar!
Já não é sem tempo, sabes que a comida está
para este corpito como a igreja está para a alma. – Respondeu o Dércio,
esboçando um risinho.
Já que calha a talho de fouce,
diz aí ao Anacleto para trazer o pipo do vinho antes que fique em gelo, que uma
rodada vai de certeza, e o capataz Humberto também já está com sede. –
Acrescentou o Jorge no mesmo ar brincalhão.
Os intensos e abrasadores raios de sol dardejavam agora a pique sobre a
seara, tornando-a mais áspera e libertando um fino pó que se entranhava nos
poros da pele curtida e secava a garganta dos segadores. As costas vergadas
ensopavam-se de suor, as camisas ao longo da coluna pareciam de uma cor mais
escura e nas axilas formavam dois lagos que as gotas caídas da testa e do
pescoço alimentavam como se de uma fonte se tratasse.
O passar do pipo, além de proporcionar uma breve pausa, endireitava as
costas vergadas dando-lhes um retorno à sua posição inicial e aliviando por
breves momentos a intensa dor dos quadris.
Já lá vem… Já lá vem…. -
Gritou o Dércio.
No cotovelo do caminho, que o Dércio não esquecia nem largava há já
algum tempo, viam-se agora três vultos indefinidos que mais se assemelhavam a
pequenas figuras da ilha de Páscoa.
À medida que os vultos se aproximavam, tornavam-se mais definidos e iam
ganhando os contornos de três mulheres com cestos de verga à cabeça cobertos
com toalhas e à cintura, com o braço metido na asa, equilibravam pequenas
cestas de vime onde transportavam as louças e a comida para a merenda que, dada
a distância a que ficava a casa, era já levada para o campo, ficando à guarda
dos segadores para mais tarde.
Distinguia-se ainda, pendurado num braço das figuras caminhantes e
assente no quadril, um cântaro que, pelo aspecto e pela tampa de cortiça que
lhe tapava o bocal, devia trazer a sopa.
Eram a Maria, a Ana e a Lúcia que carregavam o jantar e, nessa altura,
quase todos os segadores suspiraram e lançaram um breve olhar de contentamento
para as mulheres e os cestos que transportavam imaginando com água na boca, mas
ainda sem cheiro, o conteúdo dos mesmos.
Arrastavam-se vagarosamente pelo caminho até desaparecerem na curva do “Pórto”
que contornava o lameiro do tio Zé Çuca, onde era frequente ver o seu filho
Fernando a guardar as vacas enquanto pastavam, atravessado pelo meio por um
ribeiro permanente, mas com pouco caudal no verão, que corria até à pequena
povoação dos Vales.
Após alguns minutos, viam-se os cocurutos das toalhas, com padrões
coloridos que tapavam os cestos que iam à cabeça das mulheres, surgirem lentos
e com a cadência de passos lentos por cima das silvas que cobriam a parede Este
que servia de socalco à cova de Vila Seco.
Também elas já tinham avistado os segadores e a Maria desabafou,
escondendo o cansaço:
Porra, … até que enfim. Já chegámos. Vós não
sabeis o que é que estes “carvalhos”
esta palavra era suavizada pela presença de gente de fora – me fizeram a ano
passado.
Então o que foi? – Perguntou a Lúcia.
Olha, vê lá tu que um dia fui
levar o jantar pensando que estavam no “Pórto”, chamei, chamei e nada!
Carvalho nisto, onde terão ido? – Pensei. – Vou-me até à “Renda” que
devem estar lá. Um” caralicho”! Nem vê-los. Mas que raio, onde se terão metido?
Já toda arreliada, fui à “Penatoura”… também nada! Ó meu Deus! E agora que
faço? Raios partam a minha vida. Desabafei estas e outras que me vieram à
cabeça, e que Deus me perdoe.
E então? – Quis saber a Lúcia.
Olha, fui dar com eles todos esparramados na
touça, à sombra, a afiarem as fouces.
Coitada! – Disseram em uníssono a Lúcia e a
Ana.
Ó António. Cá estamos. – Gritou a Maria. –
Onde queres que pousemos os cestos para jantar?
Eia, mulheres, estais todas suadas, Reparou. – Olha, ponde os cestos debaixo
daqueles carvalhos, que sempre jantamos à sombra. – Disse, apontando para a
pequena touça sobranceira à terra.
Esta já está. – Suspirou a
Lúcia tirando um lenço do bolso da frente do avental e enxugando com ele a
testa.
Deitaram mãos aos
cestos que traziam à cabeça para os descerem. – Ajuda aqui, António. Pediu a Maria enquanto pousava devagar toda
a carga, como se de porcelana se tratasse, enquanto ia libertando algumas
interjeições de alívio. Retiraram da cabeça as pequenas rodelas feitas de
toalhas pequenas que se pareciam com regueifas amassadas e lhes permitiam o
equilíbrio dos pesos que levavam e evitava alguma dor e esfoladelas provocados pelos
fundos dos cestos de verga.
As toalhas foram estendidas numa zona mais chã da touça, onde algumas
folhas amareladas e avermelhadas caídas foram varridas pelos pés da Maria, e nas
bordas foram colocadas pequenas pedras para evitar que a mais pequena brisa pudesse
enrolar as toalhas estendidas para o jantar.
Nelas eram colocados os pratos, os talheres e os copos, formando um posto
de degustação que era religiosamente ocupado pela hierarquia do grupo que se
tinha composto.
A canhona refogada, as batatas cozidas, o pão, a sopa, o vinho e a água
e outros condutos já se encontravam estrategicamente colocados, convidando o
pessoal ao respectivo repasto que antecederia uma pequena sesta.
O António fez sinal ao capataz e o Humberto chamou o seu pessoal para o
jantar.
Então rapazes, não estavam à
espera disto?... Pois então vamos lá.
Após o fundo dos tachos ter sido posto a descoberto pelos esfomeados
segadores e os pipos de vinho se encontrarem mais leves que uma pena de rola
caída por perto, viam-se, lentamente e numa cadência dormente, os segadores
levantarem-se para desentorpecer as pernas e procurarem um pequeno leito para
descanso por entre a folhagem que tinha caído e as sombras mais acolhedoras.
A Maria, a Lúcia e a Ana, depois de arrumarem toda a louça, dispuseram-se
a separar um cesto com pão, carne de porco, bacalhau desfiado, algumas
azeitonas azedas como fel e dois ou três queijos de cabra secos que daria para a
merenda do rancho de segadores, uma vez que, dada a distância, não voltariam a
trazer mais mantimentos, como era costume, regressando a casa para a preparação
da ceia.
Aproveitando a pequena sesta, aproximadamente uma hora, alguns
segadores aproveitavam para encontrar, nas giestas mais acima, um lugar
discreto e seguro para satisfazerem as suas necessidades físicas, iam a campo,
como era costume dizer.
****
De regresso à seara lá vinham eles, uns mais ensonados, outros com ar
de resignação, para continuarem a sua luta até o sol desaparecer mesmo por
detrás do pico da fraga da Anta.
A tarde decorreu calma, com o sol cada vez mais abrasador e cada
seitourada tornava-se mais penosa à medida que iam avançando cova acima.
Timidamente, antes da merenda, ainda tentaram uma moda da tarde, mas as
vozes em surdina, como que arrastadas pelas gotas do suor, foram esmorecendo à
medida que o cansaço ia tomando conta destes heróis de outrora.
Com o sol prestes a deitar-se, arrumaram todos os apetrechos e o cesto
vazio da merenda e rumaram caminho fora em direcção à povoação.
Já dentro de portas, alguns aproveitaram para se reabastecer de tabaco
e talvez o reforço de um copito na taberna onde o Sr. Álvaro, na de baixo, e o
Sr. António “Trocho” na de cima, aguardavam ansiosamente por estes finais de
tarde com clientela fora do habitual.
Em casa da Maria, ultimava-se a ceia e preparava-se o dia seguinte.
22 comentários:
Orlando
As mulheres de Rebordaínhos têm, todas elas, problemas graves de ossos. Suportar aqueles pesos enormes à cabeça - e manter os cestos equilibrados - durante percurso de vários quilómetros enquanto, nas mãos, seguravam as latas do caldo é um esforço brutal e de uma violência atroz. A tua mãe contou-me o episódio que tu aqui referiste: de andar à procura dos segadores pelas terras dos confins do termo e olha, foi ela mais capaz de se rir do que eu, que me doeu a alma.
A homenagem que fazes aos teus pais - e a quem os costumava (e podia) ajudar nessas alturas, a tua tia Lúcia e a Aninhas da Eira - são justas e nunca é demais lembrá-los.
O trababalho agrícola, feito como os nossos pais o faziam, era de grande violência e de muita despesa. Contudo, é impossível tirar da memória do ar de satisfação com que terminavam cada uma das etapas: tinham garantido o sustento da família por mais um ano. E esse grato prazer era tudo quanto lhes importava. Quanto lhes devemos!
Deus te pague por este belíssimo registo.
Um grande beijo
Olá Fátima,
E a todos
Em primeiro lugar queria agradecer à Fátima a ajuda e a força que me deu par me espevitar um pouco. Agradecer-lhe ainda ter-me enviado a letra da moda dos segadores que transcrevi.
Obrigado por tudo
Orlando Martins
António,
Fizeste-me vir as lágrimas.
Mas, prá frente. Como estás, ainda jogas futebol daquela maneira que só tu sabias fazer?
O teu problema na coluna já passou?
Um grande abraço também para ti deste teu amigo.
Orlando Martins
Mais um excelente texto. Se possível, gostaria de saber o significado de canhona.
Quando pequena transportei muitas bilhas de água, assim à cabeça. Com uma "rodilha" feira com uma toalha velha.
Um abraço e parabéns pelo texto.
Canhona:
Em Trás-os-Montes canhona é uma ovelha já com uma certa idade.
Este último quadro das cenas da vida rural no tempo do ditador Salazar conclui, com chave de oiro e com o brilho das espigas ao sol, um tríptico que muito honra quem o pintou, mas também enriquece espiritualmente todos aqueles que tiveram a felicidade de o ler.
Dito isto, e não querendo parecer chatinho, deixem-me fazer um pequeno reparo à forma displicente com que alguns comentadores deste blog trataram a minha proposta de fazer uma cooperativa agrícola em Rebordainhos. O que proponho é uma cooperativa de produção agrícola e não o estabelecimento de índole comercial que terá existido em Rossas de Cima, onde a alta burguesia que o dirigia só procurava o lucro fácil à custa da exploração do trabalho do lavrador.
Uma cooperativa ou é comunista ou não é cooperativa!
A exploração e os trabalhos pesados só poderão acabar no dia em que termine o direito à propriedade privada.
Desde as terras, as foices, os martelos, as roçadouras, até às roupas que trazemos no corpo e aos pares de botas de trabalho, será tudo da cooperativa. Então, sim, mesmo nas terras mais pobres, correrá o leite e o mel!
Joaquim da Torre do Sino
Orlando, bom dia.
A Fátima já te respondeu. Sou eu, sim, a Amélia da tia Teresa! Tenho vontade de te ver e de te abraçar.
Narraste, e muito bem, um longo dia de segada. Agora, tens que narrar o dia da malha certo?
Beijocas
Amélia
Amélia,
Tu és tramada, mas as musas ainda não vieram ter comigo.
Muitos beijos
Orlando
Joaquim da Torre do Sino,
Rossas é em cima porque em baixo, é Santa Comba!
Obrigado Orlaando pela tua "segada".
Perdoa-me que te acrescente um nome aos trabalhadores e mulheres que referes. O teu pai e a tua mãe tinham muita estima pelo irmão da Aninhas da Eira, o ARMINDO. Acho que às vezes era um braço direito dos teus pais.
Quanto à cooperativa de Rossas é pena o teu pai não ouvir esses comentários de meia-tijela para ele lhes poder responder, pois eu apenas reproduzi o que teu pai referia e acho que ele nunca se sentiu explorado.
Vamos à "malha" porque eu apenas gostava de andar aos sacos, pois a palha e os "coanhos" faziam-me comichão.
Filinto
Sr, Anónimo,
Muito obrigado pela correção. De qualquer maneira, o sentido e a verdade da mensagem mantêm-se. É como nós dizermos que um neo-zelandês, quando se encontra na sua terra natal, está de pernas para o ar, e este responder que quem está de cabeça para baixo somos nós- as duas perspetivas são válidas. Aqui, o que interessa é que todos sabem onde fica Rossas de Cima.
Joaquim do Sino da Torre
Orlando: saboreei esta terceira parte como o manjar das outras duas... explendido! Como consegues recordar-te dos nomes desses herois segadores, do Brinço, neste caso, pois também havia camaradas de Ala, Cabanelas etc.? E que narrativas detalhadas tão sublimes!Ser poeta é um dom. Forte abraço
António,
Mandei um comentário para o teu blog de Murçós, mas não sei se o recebeste.
Confirma-me
Um abraço
Orlando Martins
Sim recebi e estou-te imensamente grato pelo conteudo e visita. Abraço
Orlando,
raramente me conseguem deixar sem palavras. Tu fizeste-o.
Lindos,lindos, lindos, estes teus textos. Que belos retratos escritos!
As tuas descrições são tão reais e pormenorizadas que, ao lê-las, senti que era mais uma personagem que, ao longe, observou todas as cenas.
Bem-hajas
Aguardamos por mais!
Bjos
Olímpia
Olá Olímpia,
Ando a pensar cá numa, que só com a tua autorização e da Pachica é que a poderei escrever. Atua mãe ria-se às gargalhadas.
Depois falamos
Beijinhos e Obrigado
Orlando Martins
Orlando,
Se é o que estou a pensar, esse episódio passou-se com a Lena e Olimpia e não com a Pachica.
Gostava que publicasses!
bjs.
Amélia
Sim, se é também o que eu penso, foi com a Lena que se passou esse episódio. Só a ti o confessámos e tu...contaste às nossas mães.
A tua, na sua maneira tão caraterística, tratou de nos fazer passar por uma vergonha. Também ela se divertiu.
Beijo
Olímpia
Orlando:
Antes da malha vem a acarreja. Por isso tens mais um tema para escrita. Venha daí que nós agradecemos.
Beijos e, tal como a Amélia tenho vontade de falar contigo.
Orlando
Razão tem a Augusta para te lembrar a "acarreja". O ARMINDO foi o braço direito do teu pai em muitos dos trabalhos como a acarreja, malha, batatas... Grande Armindo que me cortou o cabelo "à escovinha" que eu pensei ser ser um penteado moderno. Esse grande barbeiro merece aparecer no teu futuro texto.
Filinto
Amigos bloguistas,
Reconheço que errei.
Nos meus preconceitos a língua mirandesa não passava de uma mistura de galaico-português com leonês medieval, falada por meia-dúzia de campónios em aldeias esquecidas no tempo, situadas para lá dos montes, nos confins da civilização! Eis senão quando a palavra CANHONA, feia e áspera como lixa grossa, feriu-me os olhos, por mais do que uma vez, quando a li, no tríptico literário da autoria de Orlando Martins sobre as segadas de antigamente. Com a exceção da senhora comentadora Elvira, nota-se que para o ilustre público deste blog dizer “canhona” ou “canhonha” é tão familiar como dizer os substantivos comuns “ovelha” ou “cabrito”.
Na minha cabeça fez-se luz: o mirandês é, afinal, uma língua tão viva como o Português.
Se os povos do nordeste transmontano foram tão oprimidos por Salazar e Caetano que, durante quase meio século, não tiveram direito de se exprimirem na sua própria língua, é da mais elementar justiça que agora, fazendo uma discriminação positiva, o português seja varrido das escolas primárias, secundárias e superiores transmontanas nos próximos cinquenta anos!
Neste enquadramento de vítimas da tirania cultural, os mirandeses, com a sua língua, estão ao mesmo nível dos povos africanos oprimidos que falam umbundu, kimbundu, kilongo, bitonga, balanta, fula, etc, mas acima dos autores primitivos das pinturas rupestres de Vila Nova De Foz Côa.
Joaquim do Sino da Torre
Muito obrigada pela explicação.
Um abraço e bom fim de semana
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