domingo, 18 de outubro de 2015

A VINGANÇA DO BACALHAU

POR: ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES


Vocês lembram-se do Sérgio, aquele tontinho que aparecia lá por Rebordainhos, quando as searas lourejavam e já se afiavam as seitouras? Lembram lá agora!

Coitado! Manso como a terra; nos olhos um luaceiro de bondade e de permanente pasmo perante as coisas, os bichos, as gentes… Sempre descalço, mas de chapéu, de fato abotoado, ou melhor, de fatos, dos fatos que lhe iam dando, normalmente de cotim, os dos pobres, já que são os pobres quem mais dá aos pobres, e, quando as circunstâncias o pediam, de gravata, muitas vezes directamente atada sobre as peles do pescoço, que nem sempre calhava trazer camisa. Ora aperreando-o, de muito apertados, o que era raro por ser miudito e enxuto de carnes, ora pingões, a sobrarem-lhe, dobrados nas mangas e enrolados nas canelas. Às vezes a caridade andava mais distraída e a ida ao algibebe atardava-se. Então as pernas das calças mingavam, ripadas das poeiras e lamas dos caminhos, e ficavam-se pelo meio das tíbias escanzeladas. Com tal físico e com o treino que se impusera, era um andarilheiro infatigável. Não parava quieto. Aparecia e desaparecia como um trasgo. Dizia-se que, nas suas deambulações, já tinha descido até ao Porto. Da sua mudez, nunca foi possível tirar a limpo tal informação. Mas é de crer que sim.

Era pobre, mas não pedia. Aceitava o que lhe davam com aquele olhar manso de cão perdido sem coleira. E o mais comum era vê-lo a refeiçoar sentado na soleira das portas, migando um carolo de centeio para dentro duma malga de caldo, o passadio mais corrente para os aldeanos nessa altura. Rapado o fundo da malga, entregava-a à dona de casa, mudo, como se as palavras o cansassem, erguendo para quem lhe matara a fome os olhos vagos inundados de gratidão. Nos tempos livres, que eram todos, percorria as ruas da aldeia recolhendo trapos e papéis velhos. Mas poucos, muito poucos. Poucos papéis, porque pouco se lia em Rebordainhos e os escassos jornais ─ do Sr. Padre, do Sr. Professor ─ eram reciclados para recortar e forrar os armários da louça. Poucos trapos, porque os trapos era para serem usados até ao fio e, quando já não tinham préstimo para cobrir o esqueleto, ainda se guardavam para tecer uma hipotética manta de trapos no tear da Antonieta ou da Perpétua. Hoje acredito que o pobre nenhum proveito tirava de tal recolha e o seu gesto assentava apenas em preocupações de higiene e limpeza. Tinha muito de ecológico avant la lettre, o Sérgio. Sim, o Sérgio era um visionário incompreendido. Se não, escutem.

Andasse lá por onde andasse, na festa de Santa Maria Madalena (em Julho, para quem ande de candeias às avessas com o calendário hagiográfico) era tido e achado em Rebordainhos. Mas era uma tragédia. Sendo a festa do orago, com convite feito a familiares e amigos das redondezas, era ocasião azada para imolar toda a casta de animaizinhos que pudessem ajudar à santa trincadeira. O que constituía uma aflição indizível para a alma sensível do Sérgio. Perturbado no seu amor por todo o ser vivente, descalço como sempre, arrimado ao seu bordão de caminheiro, deslaçava-se-lhe a voz, clamando em altos brados pelas ruas da aldeia, como os profetas bíblicos na Babilónia pecadora apelando à conversão dos perversos:
─ Não mata pitinha! não mata cordeirinho! não mata cabritinho!... ─ E estacava esbaforido, retomando o fôlego, com o ar alucinado dos profetas que pregam para orelhas moucas. E retomava:
─ Come pão, come couve, come batata!... Mas não mata cordeirinho!... Come nabo, come bacalhau, mas não mata cabritinho!...

Como se vê, além de ecologista avant la lettre, o Sérgio era também vegan avant la lettre, é claro, sem o saber. E se ele nomeava o bacalhau como iguaria possível na celebração festiva, era por apenas conhecer o gadídeo (como ensina o José Quitério) das mercearias, no seu aspecto de múmia triangular salgada, ignorando que, antes disso, ele fora também ser vivo e livre nos oceanos. A tanto não chegavam as suas informações no capítulo da zoologia.

Ora, a última vez que vi o Sérgio, era já eu estudantinho de terceiro ou quarto ano. Eu estava de férias e o Sérgio comparecia, com a regularidade habitual, para as celebrações da Santa Maria Madalena. Tinha havido a missa solene com solene sermonata, mais a procissão circunvagando a aldeia, aformosentada pela banda (de Pinela, suponho), tinha-se papado o lauto jantar festivo, iniciava-se a possível passeata pós-prandial, e quem havia de aparecer, espavorido, aos berros?... O Sérgio. O pobre já tinha corrido meio povo gritando esgazeado. O que fora, o que não fora. O desgraçado trazia uma espinha de bacalhau atravancada na garganta e não encontrava quem lhe acudisse. E, espavorido, de boca escancarada, apontando com dedo aflito as goelas, agarrava-se a mim como pessoa culta que até andava nos estudos, que lhe encontrasse salvatério para a aflição. E eu, quase tão aflito como ele, espequei, esparvoado! Até que alguém, ali ao lado, receitou: ─ Ó homem, bebe uma colher de azeite e engole uma côdea mal mastigada! Remédio santo! O Sérgio estava salvo.

Nunca mais o vi. Que Deus lhe fale à alma, que nela não havia o mais leve resquício de maldade.

Dir-me-ão que não, que é maluquice. Mas a mim ninguém me tira da ideia que aquilo foi maldição do bacalhau pela desconsideração em que o pobre do Sérgio incorrera ao não o incluir no seio dos seres viventes com direito a serem salvos da deglutição humana.

15 comentários:

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Claro que me lembro do Sérgio que, não sei lá pelo quê, abancava sempre em casa da tia Alzira e do tio Alípio. Também ignoro de que terra fosse.

As suas dificuldades em falar deveriam vir do desenho dos lábios, que eram uns lábios de coelho, sempre a tremer (tenho relutância em chamar-lhe lábio leporino, por me não lembrar de qualquer falta de união no seu lábio superior).

Como o Sérgio, havia outras figuras de "arribação", como aquela mulher que aparecia sempre com o caldeiro pendurado no braço...

A forma como estas pessoas eram aceites na sua singularidade mostra bem que, ao tempo, precisávamos menos de lições de humanidade do que precisamos agora. Obrigada por nos fazeres pensar nisso.

Beijos

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito belo. Que demonstra que nessa altura o povo sabia o que queria dizer, "todos diferentes, todos iguais".
Um abraço e uma boa semana

Filinto disse...

Belo texto. Dá gosto ler e reler.
Não seria um bom texto para um exame nacional?
Tenho uma vaga ideia do Sérgio, mas o que mais me ficou na memória foi o "MENDONÇA" de quem as mulheres fugiam a sete pés.
Bacalhau? Tonho, era a comida dos pobres. O meu irmão Orlando dizia para a minha mãe: "se me quiser matar à fome dê-me bacalhau". Hoje o fiel amigo está diferente.
Obrigado.
Abraço do Primacho

Anónimo disse...

Olá Tonho,
Em força como sempre. Lembro-me muito vagamente do Sérgio e fiquei com o registo que seria de Serapicos? Não sei se seria...
De qualquer modo gostei imenso de te reler.
Obrigado

Orlando Martins

Américo Pereira disse...

Olá Tonho, mais uma vez com os contos que nos encantam.
É possível uma pessoa esquecer muita coisa mas quem conheceu o Sérgio
vai recordá-lo toda a vida. Era costume em Rebordainhos as portas de
casa permanecerem abertas durante o dia e para o Sérgio, fosse verão
ou inverno, entrava sem qualquer cerimónia e juntava-se aos demais.
Parece que estou a vê-lo, tal como o Tonho o descreve, sempre descalço
e a querer tomar parte em tudo. Não me lembro que alguma vez se tenha
dirigido a alguém a pedir para entrar ou pedir licença para se sentar.
Fazia tudo como se fosse da casa. Comia se tinha fome e ia embora da
mesma maneira como entrou. No inverno, se entrava só para se aquecer,
a visita era de pouco tempo. Retirava-se mesmo que lhe dissessem para
ficar. Nunca o ouvi queixar-se de nada, motivo suficiente para não
questionar a vida dele...

Amélia disse...

Também me lembro deste peregrino la por Rebordainhos. O Senhor Américo tem razão. Descalço, entrava porta dentro às pessoas, puxava duma tripeça ou dum banco e toca sentava-se à lareira como se fosse de casa. Acho que, numa dessas suas visitas a Rebordainhos, entrou casa dentro à Tia Glória e obrigou-a a fazer-lhe uma malga de sopas de centeio para manjar. Ela bem lhe dizia: “ vai-te embora porque os meus homens hão-de estar a chegar e não vão gostar de te ver aqui”! Mas o Sérgio, sabia e muito bem que ali não havia homens, fez orelhas moucas e só saiu depois de ter saboreado as belas sopas de centeio.

Obrigada

Amélia

Olímpia disse...

António,
que bom termos a oportunidade de nos dares a conhecer certas personagens!
Bem-hajas.
Não me lembro do Sérgio, apenas do Camilo (o que usava muitas gravatas).

Beijos

Olímpia

A. Fernandes disse...

Fátima
Até parece mal publicares dois textitos meus seguidos. Já que não encontraste um Bei de Tunes a jeito para desancar, podias mostrar aquele texto do Tareco sobre o Salgueiro Maia. De qualquer modo, obrigado pela edição.

Tonho

A. Fernandes disse...

Elvira

Não tendo o prazer de a conhecer, obrigado pela sua presença constante e pelas palavras sempre tão amáveis.

António

Filinto e Orlando
Já no texto anterior ralhava convosco pela vossa ausência, vós que sois senhores de tantas e tão ricas histórias. E então o tio Adriano que era um extraordinário contador de contos. Cá vos espero, que eu dei o berro, com os meus escassos 5 anos de Rebordainhos. Um abraço
Tonho
Américo, Amélia
Afinal havia quem se lembrasse do Sérgio! E vocês mostram que o conheciam bem melhor do que eu, de uma maneira mais íntima e humana. Se o soubesse nem me tinha atrevido a escrevinhar estas linhas, ou então tê-las-ia escrito de maneira bem diferente. Obrigado pelas vossas achegas, tão bonitas, tão bem observadas; na próxima edição vou tê-las em conta. Abraços
Tonho

Olímpia
Obrigado eu pela vossa paciência e benevolência de leitores compreensivos. Não conheceste o Sérgio, mas a Amélia vai decerto contar-te algumas das histórias que ela tão bem conhece. Um abraço
Tonho

Anónimo disse...

Olá Senhor António,

Não conheceu a Joaninha, o Laribau, O Tonto de Pinela? (Uma malguinha de caldo, só se chega, só se chega).....

Abraço

Um Transmontano que está longe

A. Fernandes disse...

Senhor Transmontano:

Não, senhor Transmontano que está longe, não conheci essas personagens. Estive pouco tempo em Rebordainhos e o que escrevo vem dessas memórias entre os seis e os onze anos, mais umas quantas passagens pelas férias. Mas desafio-o a que no-las apresente. Será um prazer para todos nós que temos saudades desses tempos e dessas gentes.

Um abraço

A. Fernandes

Rebordas disse...

Já escarafunchei a minha memória, mas não consigo lembrar-me dessa personalidade, nem ao menos muito vagamente. Também eu morei tão pouco tempo em Rebordainhos que hoje lembro de bem poucas pessoas. De algumas lembro o nome, mas esqueci a fisionomia e de outras o inverso.
Parabéns e obrigado pelo belo texto e informação que são sempre bem-vindos para quem é realmente da terra e não consegue esquecer, mesmo após muitos anos distante.

César

Fátima Pereira Stocker disse...

Tonho

Tens muita razão em queixar-te. Acabei de me penitenciar por interposta pessoa de Almada Negreiros, antes de ser engajado pelo situacionismo.

Beijos

Serrana disse...

Dr. António,

Brinda-nos com dois lindos textos. No primeiro, trouxe-nos à memória os velhos da nossa juventude. Do Tio Pereira não me lembro. Do tio Ramos, lembro-me perfeitamente mas de exercer a profissão de ferreiro não. Era Pai da Tia Teresa e Avô da Dr.ª Augusta e da Amélia (e irmãos). Sendo da idade da Amélia e um pouco mais velha, desculpem, " mais idosa" que a Dr.ª Augusta, acompanhei-as algumas vezes a casa da Tia Helena e lembro-me, do Tio Ramos, estar sentado no escano ao lume.
Do tio Amadeu também me recordo. Viviam ao pé da escola, e quando passava, lembro-me de vê-lo ao soalheiro, nos dias de sol de inverno, com a sua esposa.
Será que alguém, mais tarde, irá recorda-lo a si e à D. Fátima com tanto carinho? Já cá não estaremos para ver.
Quando li “Vocês lembram-se do Sérgio, aquele tontinho que aparecia lá por Rebordainhos”. De repente fez-se luz na minha cabeça! Há!. O Sérgio de Serapicos! Tremia muito do queixo inferior, andava sempre descalço, entrava e saía como um raio na casa das pessoas.
Havia outras figuras que, de vez em quando, visitavam Rebordainhos. Lembro-me da Joaninha de Outeiro, o maluco de Pinela, o maluco de Vale de Salgueiros, o Mendonça e Lauribau de Rossas.
Bem-haja, Dr. António por me fazer regressar aos meus tempos de juventude. Já li e reli os textos e não me canso!
Cumprimentos, e escreva-nos mais destas maravilhas.

Mais uma vez bem-haja.

A. Fernandes disse...

Rebordas
Serrana

Embora a destempo, não posso deixar de vos agradecer tão simpáticas, mesmo comoventes, palavras acerca da minhas pobres escrevinhações. Não sei quem vocês são, mas é fácil adivinhar que são de Rebordainhos e à nossa aldeia ligados pelo cordão umbilical da saudade: aqueles tempos, aquelas gentes e sobretudo o nossos olhar limpo da infância, aberto às coisas e às gentes, com todo o tempo do mundo à nossa frente.
Serrana: essa do Dr. vem mesmo a mais.- Sou apenas o Tonho da tia Lídia ou o António.
Obrigado

António