domingo, 25 de setembro de 2016

TIA ZULMIRA

    “ - O rapaz já podia começar a servir… Eu, com a idade dele, guardava cabras… Queres tu deixá-lo comigo? - propôs o Lopo.
     - Deixá-lo?!
     Pelo caminho fora a palavra soava-lhe como um zumbido atroz nos ouvidos escandalizados.
     - Deixá-lo! Há cada uma! Ia agora deixar-lhe o menino!”

Miguel Torga, Mariana, in novos contos da montanha



Não sei se alguém, alguma vez, terá feito esta pergunta à tia Zulmira. Se sim, a resposta teria sido a de Mariana: “Há cada uma!”

Deve passar-se alguma coisa de muito especial na cabeça das mães, para que sejam mais agarradas aos filhos do que a elas próprias. Parece que lhes dói mais tocarem-lhes nos filhos do que terem o corpo coberto de chagas e nunca sentem fome desde que os filhos estejam saciados. As mães só sentem fome de terem os seus filhos – e de os terem consigo, sem precisarem de mais ninguém.

Há mulheres que são mães e que não prescindem de ser mulheres. Não sei se são heroínas, ou vítimas do tempo em que nasceram. Sei, contudo, que são seres especiais a quem Deus dotou da capacidade de, pelo seu agir, pôr à prova a nossa capacidade de amar e de aceitar quem não trilha os mesmos caminhos que nós. Parafraseando Jesus: a regra foi feita para o homem, não o homem para a regra!
Ela não o saberia, nem cuidaria em tal, mas mulheres como a tia Zulmira foram precursoras da liberdade que hoje vivemos: rasgaram caminho a pulso, sentiram na pele o aviltamento de uns, a vilania de outros, enfim, a perfídia de muitos, mas sobreviveram, amparadas a si próprias; acolhidas por quem, sem vãs filosofias nem entendimento errado da fé, sabe que o mais importante é o amor.
A tia Zulmira deixou-nos durante este mês de Agosto. Partiu para o Céu tão lúcida como sempre viveu. Nosso Senhor deve tê-la acolhido feliz, porque ama aqueles que souberam amar e exercer a humana condição da liberdade.
Bem-haja, tia Zulmira.

15 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Que encontre a Luz e esteja em Paz.
Um abraço

EC disse...

Que texto tão bonito escreveste sobre a minha avó!!
Deus te abençoe, Fátima!

Sempre grata...
Beijinho
Milita

Fátima Pereira Stocker disse...

Elvira

Certamente que sim! Obrigada.

Fátima Pereira Stocker disse...

Milita

A tua avó era a minha "tia" Zulmira, pessoa inspiradora por quem sempre nutri muito carinho. Quando assim é, as palavras brotam do coração.

Um grande beijo

Augusta disse...

Fátima:
Permite-me que acrescente: a tia Zulmira era a NOSSA tia Zulmira. Atrevo-me a dizer que todos nós nutríamos esse carinho por ela. Sentimento esse que ela retribuía com aquele sorriso que as fotos que publicas tão bem espelham.
Beijos

Petrus Monte Real disse...

Fátima:

Mães e avós: uma geração, única,
marcada pela dedicação e amor aos filhos
e a quem lhes fosse próximo [serão, elas, autênticos arautos da mensagem divina?].
Muito belo:
o texto trouxe-me à memória a minha tia Olinda, que,
sendo solteira toda a vida, desempenhou o papel de "mãe" e tinha o mesmo sorriso da Zulmira.

Obrigado!

Fátima Pereira Stocker disse...

Augusta

Efectivamente: era lindo, por ser tão acolhedor, o sorriso da tia Zulmira.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Petrus

Bem-haja pela sensibilidade demonstrada.

Anónimo disse...

Lamento e fico triste, muito triste.
De morte em morte vou ficando mais pobre e reforçam-me as memórias.
Há muito que não a via. A última vez ainda estava em casa queixando-se de pouco ou nada poder fazer por andar muito manca e as dores não se esquecerem dela.
Mas a Zulmira não esquecera os meus gostos de catraia e disse-me:
- Ai Dadinha agora já não te posso dar os meus queijos, já não nos faço. Estou velha e manca.
Onde quer que estejas Zulmira , não era só pelos queijos que eu era gulosa também sempre foste uma pessoa muito carinhosa comigo e isso faz parte das minhas lembranças.
Eduarda

Chanesco disse...

Olá Fátima

É admirável como, com tão poucas e tão simples palavras, a Fátima consegue construir um poema do tamanho de uma vida.

Um abraço

Anónimo disse...

Cada um de nós faz coro com o povo e todos dizemos:


Ó minha mãe minha mãe

Ó minha mãe minha amada

Quem tem uma mãe tem tudo

Quem não tem mãe não tem nada

Fátima Pereira Stocker disse...

Eduarda

Obrigada!

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Chanesco

Bem-haja, pela sua inimitável gentileza.

Beijos

Fátima Pereira Stocker disse...

Anónimo

E o texto continua:

Quem não tem mãe não tem nada
Quem a perde é pobrezinho
Ó minha mãe minha mãe
Onde estás que estou sozinho.

O povo sabe o que diz e o José Afonso musicou as quadras de forma magistral)

Maria josé pereira disse...

Amiga ZULMIRA descansa em PAZ ENVIO PARA A familia e amigos OS MEUS SENTIDOS pêsames