por
ANTÓNIO AUGUSTO FERNANDES
Ó geeraçom que
depois veo, poboo bem aventuirado, que nom soube parte de tantos males nem foi
quinhoeiro de tais padecimentos!
Fernão Lopes,
Crónica de D. Loão I, cap. 148
A Cabecinha era o miradouro de Rebordainhos para o mundo.
Na estrema poente da eira da Cabecinha moravam as boas gentes do tio António da
Eira. Na estrema de nascente acabava a aldeia e dali alongavam-se os olhos para
os longes azulados da Sanabria, já em Espanha, e todo o planalto de vai de
Miranda a Mogadouro, todo um ror de terras matizadas em verde e barro que se
iam diluindo na tremulina do horizonte. Sempre que meu pai me mandava à tosquia
ao Armindo da Eira, não resistia a beirar-me do murete-fim-do povo para o
contemplar o sem-fim-do-mundo
Era por aquelas bandas, se bem me lembro, que morava o
tio Feliz, cabreiro de profissão já reformado. Dele apenas guardo a difusa
memória de um velhito magro e pequeno, arcado sobre uma cajatinha, botas
cambadas de couro cru, colete e jaqueta de cotim, em suma, ataviado segundo os
ditames da moda para a terceira idade em Rebordainhos. Em passos incertos,
apoiado ao porrete, lá vinha ele atravessando o Prado como uma sombra, seguido
pelo cachorro que não o largava, indo sentar-se à porta da taberna. Apoiava as
mãos sobrepostas à curva da cajata e descansava o queixo sobre as mãos: com
todos os vagares do mundo. Porque não tinha concorrência, circunvagava os
olhitos miúdos pelo chão à sua volta, com minúcia. Findo o exame, entregava-se
à faina de ir arrastando pacientemente, com a ponta da cajata, as piriscas ao
seu alcance até junto da biqueira das botas. Feito o montinho, recolhia
disfarçadamente o produto da colheita no bolsito tabaqueiro do colete.
Descansava uns momentos para não se dar ares de esganado pelo vício dos fortes.
Depois sacava de uma mortalha e ia desfazendo uma a uma as beatas recolhidas
até perfazer o quantitativo que ele entendia cabonde para um cigarro, magrito e
envergonhado. Tais eram os tempos arrenegados! A Segunda Grande Guerra tinha
findado havia meia dúzia de anos e as suas misérias faziam-se ainda sentir na
magra mantença do caldo adubado com unto e das batatas cozidas com um talo de
couve e alumiadas com um pingo de azeite diluído em água do caldo! Um cristão
tomado do vício dos fortes nem sequer
ao menos avezava os oito tostões para o maço de Kentucky da ordem!
‒ Atão, tio
Feliz, como
corre essa vida? ‒ cumprimentava um que passava.
E o tio Feliz:
‒ O quê? O meu
cadelo?! O meu cadelo nem por um conto de réi!
Vinha outro:
‒ Atão, tio
Feliz, a apanhar o solinho, Hein!?
‒ O quê? O meu
cadelo?! O meu cadelo nem por um conto de réi!
Coitado, surdo como uma porta! Mas, maior que a surdez
era aquela estima cega que ele votava ao podengo. Imaginem só: por essa altura
a melhor junta de bois da terra tinha sido comprada por quatro contos! O tal
conto de réi em que o Tio Feliz
avaliava o seu cachorro daria para pagar à roda de uma centena de jeiras a um cavador.
Por aqui já podem ver: se a vida corria madrasta para o dono, que apanhava
beatas do chão, o que não seria para o rafeiro!
Daí aquele ar desconfiado do cachorro, mais habituado a
pontapés (nanja do tio Feliz, claro!) que a mimos: os ossos a furarem-lhe a
pele amarelada, de pêlo eriçado das fominhas habituais, pé ligeiro calçado de
branco sempre alerta para a debandada.
Quando entregava o dono em casa e o sabia a recato, o
cadelo considerava-se forro de suas obrigações e ia tratar da vidinha. Corria a
aldeia de lés a lés. Tão depressa se via no bairro do Outeiro como já cirandava
pelas quelhas do Covelo, fariscando osso perdido, ou até côdea que fosse! Com
toda a sem-cerimónia entrava pelas casas dentro, repassava conscienciosamente
os cantos das cozinhas, ia enfiar o focinho no caldeiro da vianda dos recos…
daí os pontapés a que se habilitava e com que frequentemente era presenteado. E
tal era o à-vontade que ele punha nessas suas andanças pelo povo e metia o
focinho em todos os recantos, que o dianho do cão entrou no adagiário da terra.
Aquele
é como o cão do tio Feliz ‒
era
dito que se aplicava com toda a propriedade a quem tivesse o feio hábito de
andar a meter o nariz em sítios ou vidas que não fossem da sua conta. Será que
ainda se usa em Rebordainhos?
Outra moral para esta história do cadelo famélico e de
seu dono, o Tio Feliz, acrescida da citação de Fernão Lopes: pese-nos embora
tanta crise, já tempos bem piores se passaram. E também estes hão-de passar. Se
Deus quiser.
(Este Rebordainhense ainda não estudou o novo acordo
ortográfico)
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A fotografia do cão de gado transmontano foi retirada daqui:
7 comentários:
Tonho
Deus te abençoe por estas histórias que nos vais contando e, através delas, recuperando do esquecimento quem não merece ser esquecido.
E que bem fica o magnífico Fernão Lopes, cronista das glórias (e misérias) pátrias, a encimar mais um capítulo desta crónica de Rebordaínhos que é o "Ares da Serra!"
Beijos
Olá António! Regalei-me com a tua história contada com delicadeza e requinte, como sempre. Não conheci o Sr. Feliz, e, até devo acrescentar que ouvi falar dele pela 1ª vez... mas, que importa? Passou-se em Rebordainhos, terra que todos adoramos, e este cantinho estava a necessitar da colaboração de pessoas como vós para lhes dar animo e animação. Parabéns, és sempre apreciado qualquer que seja o conto que narres. Abraço
Uma excelente história sem duvida.
Quanto ao novo "desacordo" ortográfico não se preocupe, que com semelhante leitura ninguém dá pela forma como está escrita. É muito boa em qualquer idioma ou escrita.
Um abraço
Tonho: Já tinha saudades de te ler. Não sei como fazes, mas és sempre um deleite para os olhos, a alma e para as memórias.
Francamente, não conheci o tio Feliz, nem o adágio que dizes ter-se dito em Rebordainhos. No meu tempo falava-se mais do cão do Ernesto.
Beijo para ti e promete que vais aparecer com maior frequência.
Amigo António,
Fizeste-me relembrar as tosquias com o Armindinho (amigo pessoal e grande filosofo) e o seu irmão Horácio com a mágica pedra-hume.
Quanto a cães recordo o meu avô Adriano que da taverna do Victor me mandou atirar com uma "pressão de ar"
para a cadela do Bagueixe (fiel acompanhante) que passava na minha porta.
A distância era enorme, mas, infelizmente acertei.
A seguir foi o ladrar da cadelinha,... Quem foi, seus xxxxxx
e eu a esconder-me atrás do meu avô.
Um abraço
Orlando Martins
Olá Primacho!
O tio Feliz não é o mesmo "Tio Florindo"? Os meus pais tiveram um "boeiro" que tinha esse nome e metia o tabaco no nariz, para seu consolo.
Eu era muito pequeno, mas esse nome era muito familiar e em casa todos falavam dele.
Quanto ao acordo ortográfico também não o estudei e já sou burro velho para o aprender.
Quando leio algo sobre Fernão Lopes lembro-me daquela passagem do "Cerco de Lisboa": "Andavam os moços de três e quatro anos pedindo pão pela cidade e se lho davam do tamanho dum noz já o achavam por grande bem".
As minhas desculpas pela transcrição que se serviu da fraca memória deste velho.
Um abraço do teu primacho
Filinto
Amigos:
A todos agradeço os comentários benevolentes aqui expressos.
Quanto às observações da Augusta, relativas ao cão do Ernesto e do Filinto sobre o tio Florindo...
Bem, já lá vão uns sessenta anos e eu não posso garantir a historicidade absoluta de quanto aqui conto. "As brumas da memória" deixam tudo um tanto fosco e a recordação da infância envolve as realidades evocadas numa poalha dourada de saudade e talvez... de ternura. A frase "como o cão do Feliz" ouvi-a muitas vezes a meu pai nesse sentido de escrinador (para usar um termo aduzido pela Fátima há uns tempos). Quanto ao resto nada posso garantir como absolutamente acontecido. A única verdade indiscutível é esta: de saudade e carinho pela nossa terra e de respeito por quantos nos precederam, com os seus defeitos e virtudes, mais estas que aqueles.
Um abraço amigo do
A. Fernandes
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