Como se iniciara aquele ritual da peregrinação quotidiana e inevitável dos Pereiros até à tasca de Rebordainhos era matéria de discussão entre os vários exegetas: saturação da vida insonsa dos Pereiros, opinava a corrente existencialista; mero gosto pela pinga, discordavam os de filosofia mais rasteira; desentendimento com os conterrâneos, entendia a mor parte, com uns lumes de sociologia. Esta última opinião era de facto a mais consensual, que o caso não era para menos: os Pereiros eram, nesses tempos, uma poveca com meia dúzia de casas de granito negro ajoujadas em torno de uma capelita pouco maior que uma curriça caiada de branco. Perdida lá nos fundões da serra, em deslado da ribeira a que emprestava o nome, o sol amanhecia-lhe tarde e despedia-se cedo e, talvez por este défice de luz, aquilo era uma gente azeda, perpetuamente roída de invejas vá-se lá saber de quê, pois que todos eram suficientemente pobres para morrerem de fome se não se matassem a trabalhar. Sinal de abastança já era a posse de um burrico ou de uma junta de vacas, excepção feita ao senhor Imbertinho alfaiate, proprietário de nobre cavalicoque que lhe dava direito a senhoria e a topar com dois dedos o chapelito de aba curta quando cumprimentava o gentio de cima da montada.
E tão quezilentos eram de feitio que se tinham afeito ao vezo de consumir nos tribunais da comarca algum tostão sobejo das colheitas e escapo à dízima e ao pagamento das avenças pela Senhora da Serra. Mais prazenteiramente entregavam os magros cobres na justiça do que na liquidação do rol dos fiados na venda, mesmo que isso viesse resultar num ainda mais magro passadio de caldo e batatas na roda do ano. Quase toda a gente, ou no papel de queixoso ou no de arguido, andava enredada em querelas mesquinhas, para grande gáudio dos advogados que sabiamente iam gerindo a mamata. Ora aí estava motivo cabonde para que o tio Rasca renegasse de conterrâneos tão arrevezados e somíticos que nem tasca tinham onde um cristão pudesse condignamente matar a sede e purgar o desgosto de pertencer a tal raça.
De vila era crismada pelos de lá de baixo a cabeça de freguesia, porque tinha um pelourinho, cambado, é certo, mas sinal inequívoco de foral velho e de prerrogativas antigas. Ademais rezava a crónica oral colectiva que tivera cadeia nos tempos remotos dos afonsinos. De resto, pobre aldeia montesinha, Rebordainhos lá ia vivendo, num aperto muito franciscano, do que lhe davam os soutos, do centeio arduamente esgaravatado nas lombas escalvadas da serra de Nogueira e da batata criada nos terrenos mais lentos das pregas da serra. Se não pelo estatuto, ao menos pelos seus ares levados, pela superioridade orográfica e pelo feitio cordato dos seus habitantes, sempre a vila olhara com alguma sobranceria para os Pereiros, sepultados lá nos cafundós da serra. Quando adregava de à conversa virem os dos Pereiros, era hábito canónico alguém perguntar, quase como quem recita uma jaculatória, quando é que Deus se lembraria de dar um piparote no coruto da serra e enterrar de vez tão ruim casta.
Mas, como se vê, de tal casta não era o Tio João Rasca. Pelo contrário. Era um tipo franco e teso que fizera crónica na sua mocidade. O mais badalado dos seus fastos passara-se nos tempos do volfrâmio, quando um calhau do tamanho de uma batata, desenterrado pela biqueira descuidosa do tamanco, poderia representar para o pecúlio familiar mais que meio ano agarrado à rabiça do arado ou a esgaravatar fragas com as ganchas.
O frémito volframista fez estremecer a serra como uma febre de maleitas, e o tio João, embora já não fosse propriamente um rapaz, não escapou incólume a essa fome da riqueza súbita. Lá matutou o plano que se lhe mostrava infalível e tratou de aliciar o genro para a marosca. O Bateitas, mais timorato, ainda resistiu, mas o Rasca tanto lhe moeu o juízo, porque torna, porque deixa, que acabou por embarcar na aventura, e toca de se meterem a butes até às minas de Veigas que, cortando a direito, eram já ali, a seguir à curva grande da ribeira. Mas, ou porque a mofina os perseguisse, ou porque a azáfama dos preparativos tivesse dado muito nas vistas, (que aqueles dos Pereiros, rais os partira! gente mais espiolheira e intriguista não cobre a rosa do sol!), mal se preparavam para ensacar os primeiros calhaus, saltam de lá os guardas e, por mais que desembelinhassem as gâmbias na retirada, não se livraram de umas estadulhadas bem assentes nos lombos. Desanimados e desancados, os argonautas regressaram a penates pela calada da noite sem o velo de ouro e, sobretudo, sem tugir nem mugir. A poveca, que era pequena e de língua desembestada no que a costumes diz respeito, toscou a odisseia. E, bem depressa, algum Homero se deu a glosar o feito glorioso em métrica sofrível, mas de veneno cabonde. À socapa pelas quelhas da aldeia, a plenos pulmões pelos campos, na rega das batatas ou na sega dos pães, a trova atrevida alastrava cada vez mais desaustinada, seguindo a música popular do Raspa:
O Rasca diz que sim,
O Bateitas diz que não;
Foram às minas a Veigas,
Logo deram c’o filão!
Apanharam muitas chinas,
Mas não eram das do chão!
E mais do que lhes pesariam as pedras de volfro se as tivessem pilhado, mais que as bordoadas aparadas no costado, muito mais lhes doíam os versos que se espalhavam como a pneumónica.
Mas agora, ali na tasca, quando alguém tentava ainda atazaná-lo com a cantiga, ele rematava, com uns longes de desprendimento filosófico:
Ora adeus! Cantigas!... Tomara-me eu mas é nesse tempo!
***
Como íamos dizendo, por esse entardecer abafadiço de Agosto, já os gados recolhiam aos currais e, na eira do Outeiro, esmorecia o arfar gosmento da malhadeira, lá vinha o tio Rasca cumprindo as estações da sua via-sacra até aos Pereiros, depois de ter atestado bem a medida para o caminho na tasca do tio Trocho. Cruzámo-nos à saída da aldeia, no alto da Portela. Eu, estudantinho em férias, depois de um esforçado dia a alombar sacos na malha do meu tio Zé Çuca, fora desencardir o coiro da poeira e da comichão áspera dos cuanhos ao nosso tanque de Vale-da-Frunha em que uma bica vertia a água fresca da nascentinha minguada encanada lá de riba dos castanheiros do passal. Regressava já a casa, muito alceiro de chinelos e calções e no descaramento juvenil do tronco nu, com a trouxinha da roupa suja debaixo do braço:
− Então, tio João, já de volta até aos Pereiros? – lancei à laia de saudação.
Nem me respondeu. Especado nas pernas altas de grou, bambas do vinho e muito escanchadas para não desabar, cravou em mim os olhitos piscos de piteireiro, escancarou uma boca grande de incredulidade e lançou-me com arreganho:
− Oh! carvalho!... Vossemecê está despido!?... Tape-me essas tetas, carvalho! – E forcejava por arregalar as pálpebras, pesadas do tinto, para mais convictamente sublinhar a sua escândula, reiterando:
− Tape-me essas tetas, carvalho!... − E sustinha a sua indignação procurando argumentos no entendimento zúbio do vinho. Depois, como quem arrasa um contendor com argumento definitivo, rematou:
− Olhe que eu, em sessenta anos de casado, nunca vi as tetas da minha mulher! – E, como do Velho do Restelo canta o Épico, meneava a cabeça, descontente.
Aturdido pela veemência da objurgatória, mesmo insciente da malícia intrínseca à nudez das minhas mamas de macho, e sobretudo intimidado pela grandeza da modéstia conjugal do tio Rasca, instintivamente gasalhei as ditas debaixo da toalha. Mas ele, de consciência em paz depois de aplicado o correctivo, retomava o monólogo interrompido e passava por mim, alheado já da minha pessoa e da nudez dos meus peitos. Ainda me voltei, meio esparvoado, parafusando sobre a relatividade dos códigos morais que regem o destino da humanidade em geral e de cada um em particular: borracho ele, eu impudico... e ambos tão inocentes! A sombra esguia e negra perdia-se já por detrás da sebe de escarambunheiros que bordejavam a curva do carreirão dos Pereiros a seguir à Casa da Aula. Nunca mais o vi.
O tio Rasca (que a terra lhe seja leve!) partiu há muito, com a medida bem feita de anos e de quartilhos. Mas decerto levava no seu activo, para as contas a prestar ao Criador, a lição de moral e bons costumes com que me chamara ao caminho dos justos.